— Por que ele me baleou?
A indagação repetida insistentemente por um menino de cinco anos sobre criminosos que desembarcaram de um veículo, atirando a esmo contra moradores da Vila Pedreira, na zona sul de Porto Alegre, reflete o questionamento da comunidade que vive ali. As marcas da violência, nem sempre visíveis, estão gravadas no seu corpinho franzino. Alvejado na calçada, na noite do último Natal, o garoto, que ainda nem frequenta a escola, tem quatro balas alojadas.
No mesmo ataque, na esquina das Ruas Butuí e Ursa Maior, foram mortos a tiros Luiz William Valença Dijon, 22 anos, e Liedson Lemos Padilha, 21 — vizinhos da criança. Um jovem de 20 anos foi baleado de raspão no braço direito e sobreviveu. Ele e o menino se abrigaram juntos, enquanto os atiradores disparavam repetidas vezes contra o grupo, que estava reunido, conversando e bebendo refrigerante.
O caso é um dos quatro registrados nos últimos dois meses na Capital, que resultaram em cinco mortos e duas pessoas baleadas pelo crime organizado, sem terem nenhuma relação com as disputas do tráfico.
— Meu filho nasceu de novo. Fico pensando que hoje poderia estar como a Maristela e a Vanessa (mães de Luiz e Liedson). Estão atirando aleatoriamente nas pessoas que não têm nada a ver com essa história — desabafa a mãe.
A mulher, de 34 anos, que trabalha como segurança num shopping da Capital, fazia escala de 12 horas naquele dia. Apesar das lojas fechadas, havia movimento na praça de alimentação. Quando atendeu ao telefone, escutou da mãe que o filho havia se machucado. Alguém, ao lado da avó do garoto, deixou escapar a palavra "baleado".
— Quando ouvi, saí desesperada. É meu único filho.
Ao chegar ao Postão da Cruzeiro, a mãe descobriu que o menino tinha sido atingido por quatro tiros. Dois disparos no braço direito, um no ombro esquerdo e outro no pé direito.
— Num dia, estávamos todos felizes, e no outro acontece isso — fala a mãe.
— Me senti tão pequenininha, um nada. Ver meu neto assim. Não gosto nem de falar — emociona-se a avó do menino.
Todas as balas ficaram alojadas dentro do corpo da criança. A equipe médica concluiu que era melhor não remover os projéteis — a mãe pretende buscar segunda opinião. Em casa, o garoto mantém um curativo no braço direito e reclama por vezes de dores nas pernas, mas não apresenta nenhuma outra sequela física.
— Eu nem chorei — conta, mostrando as cicatrizes.
O menino passou a frequentar atendimento psicológico. Vez que outra, acorda em meio a pesadelos com criminosos ou sonha com Luiz, o vizinho de quem era mais próximo. As expressões "polícia" e "bandido" passaram a ser recorrentes em seu vocabulário infantil.
— Fica aqui comigo, vó — pede para não permanecer na cama sozinho.
Às vésperas do último Natal, o garoto havia reclamado aos familiares que o único lugar onde não havia luzinhas era em sua casa. Luizinho, como era conhecido o vizinho, instalou os enfeites luminosos na moradia onde vive o garoto. Comprou também uma bola de futebol para o menino. Não teve tempo de presenteá-lo com o brinquedo, que só foi entregue dias depois do ataque a tiros.
O garoto, que adorava jogar nas pracinhas, chegou a experimentar a bola na área da moradia, mas tem permanecido mais tempo dentro de casa, em frente ao videogame. Quando sai à rua, atento, assusta-se quando percebe a aproximação de um carro estranho.
— Vamos embora, vamos para casa — insiste.
"Essa guerra não é nossa"
Na noite da última segunda-feira (20), um novo tiroteio deixou os moradores da Vila Pedreira em pânico. Crianças brincavam na rua, jogando bolita, quando criminosos passaram atirando e alvejaram o veículo de uma moradora. Ninguém se feriu nesta ação.
Maristela de Almeida Valença, 46 anos, ouviu os estampidos e saltou para a rua gritando o nome do caçula, de 20 anos. Acalmou-se só quando percebeu que o jovem estava dentro de casa. A auxiliar de limpeza temeu ver repetida a mesma cena do último Natal.
Na noite de 25 de dezembro, já estava dormindo quando despertou com os disparos. Ao ouvir os estampidos, jogou-se no chão ao lado da cama. De lá, escutou o marido gritar em desespero:
— Meu filho!
Luiz William já havia sido baleado a poucos metros de casa. O pai não conseguiu se mover diante da cena do filho caído no chão. Maristela teve o ímpeto inverso e quis ampará-lo. A mãe avançou na direção do corpo do jovem, tentando acudi-lo.
— Ele estava no chão, com os olhos abertos, os tiros aqui, no pescoço, sangrando muito, muito, muito. Ali eu já vi que ele não ia ter volta. A única coisa que eu fiz foi colocar ele no carro e levar para o Postão, mesmo imaginando que ele já tinha partido — descreve Maristela.
O jovem, que era cuidador de um idoso havia cerca de dois anos, mantinha uma rotina tranquila, segundo a família. Quando retornava do trabalho, costumava ficar em casa, no celular e no computador, com a namorada. Ela estava com ele durante o tiroteio, mas não se feriu.
— Não tinha envolvimento com nada. Sempre tentei criar eles no lado bom, fazer as coisas boas, trabalhar, ser honesto. Não entrar para essa vida de crime. E os três são assim. Passei muito trabalho para criar, mas criei bem — diz a mãe.
Naquela noite, Luiz William havia regressado do shopping há pouco e parado para tomar um refrigerante com a namorada, o irmão mais novo, de 20 anos, e os vizinhos.
— Foi questão de segundos. A tragédia poderia ter sido maior. Poderia ter perdido meus dois filhos, minhas noras — resigna-se.
Num muro perto da casa da família, foi gravada a frase "Essa guerra não é nossa". A mãe colocou flores no local e quer criar um jardim.
— É uma coisa que é certa: "a guerra não é nossa". Só quero justiça, não quero vingança, só justiça — diz Maristela, que reside há 30 anos na comunidade, e viu os filhos cresceram correndo e brincando na rua.
Em outra parede, um grafite criado por um morador traz as imagens de Luiz e Liedson.
"Mataram minha comunidade"
Foi perto dali que Liedson Lemos Padilha começou a cortar cabelo em casa, aos 14 anos. Depois, abriu um salão nos fundos da moradia, no pátio, numa peça improvisada. Havia cerca de quatro anos que os pais tinham lhe auxiliado a abrir a barbearia na Rua Ursa Maior. No último 23 de dezembro, o jovem trabalhou a noite toda e adentrou a madrugada, atendendo até as 4 horas.
— Era um exemplo para a gurizada. Nunca fez curso, aprendeu tudo sozinho. Não pedi para ele trabalhar, mas tinha esse dom. Era algo dele. Tudo que conseguiu foi adquirido com o suor dele. Comprou moto, celular, montou o quarto dele. Única coisa que ajudei foi com o salão — descreve o pai, Gilmar dos Santos Padilha, 47 anos.
Além do salão, recentemente Liedson havia montado, com um primo, uma loja online de roupas e acessórios. Alegre e comunicativo, chegou a instalar um videogame dentro do salão para entreter os clientes durante a espera.
Ativo nas redes sociais, adorava reunir amigos. Na noite de 25 de dezembro, havia comprado refrigerante para tomar na calçada. Estava de costas, conversando, quando os bandidos desembarcaram atirando no grupo. Liedson não teve tempo de escapar.
Os pais socorreram o jovem até o Postão, mas ele já estava sem vida.
— Essa cena vai ficar para sempre na nossa cabeça — desabafa a mãe, a vendedora Vanessa Lemos Pereira, 36 anos.
— É muito doído para nós perder um filho e da maneira que foi. As pessoas vindo aqui, atirando para todo lado, sem saber em quem estão atirando. Eles não mataram meu filho só, mataram minha comunidade, minha família. Acabou com a inspiração e com os projetos de muita gente. A comunidade está muito assustada. Nós estamos assustados — relata Gilmar, técnico de telefonia.
Após a perda dos jovens, moradores da Vila Pedreira se reuniram em protesto. Além dos grafites, estenderam faixas na rua, pedindo justiça. Cartazes foram fixados em frente à barbearia de Liedson, que segue de portas fechadas.
— Essa guerra nunca foi nossa. Nós nunca quisemos entrar nessa guerra. Mas somos nós que estamos morrendo. Então, nós estamos perdendo essa guerra — conclui o pai.
Homicídios em queda na Capital
Segundo a Polícia Civil, a motivação para o crime na Vila Pedreira foi a disputa entre facções criminosas. Segundo o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), o caso é tratado como prioridade, e dois suspeitos de serem os executores do crime foram presos nesta semana. A investigação segue para identificar outros envolvidos, incluindo o mandante.
O crime organizado, que vitimou os jovens na Zona Sul, é o responsável pela maior parte dos homicídios na Capital. Um levantamento realizado pelo DHPP apontou que 80% dos assassinatos eram ordenados pelas facções, no início de 2023. A partir desta constatação, foram criadas medidas voltadas para o combate às execuções ordenadas pelo tráfico.
Nos últimos anos, Porto Alegre teve redução no número total de homicídios. No comparativo com 2017, período do ápice da criminalidade violenta, por exemplo, a queda é de 514 vítimas — foram 675 naquele ano e 161 em 2024. Uma das apostas das polícias para alcançar essa redução é justamente o enfrentamento aos homicídios cometido pelo crime organizado.
Na ótica do diretor do DHPP, delegado Mario Souza, a existência de casos como o ocorrido na Vila Pedreira, mesmo no cenário de redução, demonstra a necessidade de seguir enfrentando todos os homicídios cometidos pelas facções na Capital.
— Porto Alegre vive o momento de maior queda no número dos homicídios, e a maior parte se dá entre faccionados, mas isso não nos impede de querer combater e reduzir todos os casos. Essa violência entre facções, que por vezes é vista como algo somente entre criminosos, se aumenta, transborda e passa a atingir pessoas que nada têm a ver com o crime. Esses casos são exemplo disso. Reduzimos a taxa de homicídios na Capital drasticamente e, ainda assim, existem alguns casos em que eles acabam atingindo outras pessoas. Por isso, o nosso objetivo é sempre reduzir todos os homicídios — analisa.
Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios em Porto Alegre chegou a 59 homicídios para cada 100 mil habitantes. Naquele período, ataques a tiros, esquartejamentos e outras barbáries eram recorrentes. No ano passado, essa mesma taxa fechou em 12. Medidas são apontadas pelas forças de segurança para a queda desses indicadores. Entre elas, o programa RS Seguro, implementado no início de 2019, e também um protocolo de sete medidas voltadas aos homicídios praticados pelas facções criminosas.
As sete medidas:
- Saturação de área: aumentar o policiamento no local onde atua a facção. O objetivo é impedir a venda de drogas e evitar ataques entre as facções e venda de armas, entre outros crimes.
- Indiciamento de lideranças e mandantes: visa ampliar a responsabilização atingindo quem ordenou o crime e quem autorizou a execução.
- Ações pontuais: apreensão de armas, drogas e outras operações
- Revistas em presídios: aquela facção envolvida em morte sofre revistas mais frequentes em suas galerias para verificar toda a conduta dos integrantes.
- Operações especiais e de lavagem de dinheiro: visam asfixiar o crime e retirar dinheiro, além de prender envolvidos na organização.
- Transferências dentro do RS: isolamento de lideranças em unidades prisionais dentro do Estado.
- Transferências federais: isolamento de lideranças nas unidades federais.
Segundo a Secretaria da Segurança Pública do Estado, um dos resultados alcançados no último ano com a queda dos homicídios foi a redução dos assassinatos de jovens. No Rio Grande do Sul, houve diminuição de 64% nas mortes de pessoas com faixa etária entre 18 e 24 anos no comparativo com 2017, quando o Rio Grande do Sul ainda vivia o ápice da criminalidade violenta. Naquele ano, 832 jovens foram assassinados; enquanto, em 2024, esse número caiu para 297. A maior parte deles foi vítima do crime organizado.