Disparos de arma de fogo interromperam o trajeto de um menino de 12 anos em direção à escola no bairro Três Vendas, em Pelotas. O ataque a tiros no meio da rua, que deixou o garoto ferido de raspão na perna, deu-se em 2017. A cena de uma criança que teve o caminho atravessado pela violência, enquanto tentava estudar, representa o que o município do sul do RS enfrentava naquele momento. A disputa pelo tráfico de drogas, promovida pelas facções, resultou em episódios como aquele, e levou a cidade a buscar nova receita para conter a criminalidade.
Naquele ano, a prefeitura aderiu a um plano de segurança pública, chamado Pacto Pelotas pela Paz. Entre os objetivos do programa estava derrubar crimes violentos, como os homicídios, e proteger a juventude. Adolescentes e jovens figuravam dos dois lados da mesma guerra, entre os que mais puxavam o gatilho e os que morriam. No primeiro semestre de 2017, 22% das 59 vítimas eram jovens. Seis anos depois, Pelotas conseguiu fazer esse número despencar. Em meio à redução dos assassinatos, no primeiro semestre de 2023, somente uma (6,25%) das 16 vítimas tinha até 21 anos.
— Tem muitas oportunidades que a gente perde até perder um jovem — alerta Alberto Kopittke, doutor em Políticas Públicas e diretor-executivo do Instituto Cidade Segura.
A organização foi a responsável por elaborar o plano de segurança para Pelotas. Na busca pela redução dos crimes, dois eixos foram considerados essenciais: o enfrentamento aos grupos criminosos e a prevenção. Na área que envolve policiamento e Justiça, uma das estratégias mais destacadas é a integração entre as forças de segurança. Juntos, passaram a olhar cada assassinato registrado na cidade, para entender o contexto e definir quais medidas poderiam ser aplicadas.
Entre as medidas adotadas, está a chamada dissuasão focada, estratégia inspirada na técnica criada por David Kennedy, professor de Criminologia da Universidade de Nova York, que colocou no alvo as lideranças dos grupos criminosos. O objetivo principal era fazer as ordens de execuções nas ruas, muitas vezes vindas das cadeias, cessarem. Neste sentido, foi essencial a participação da Vara de Execuções Criminais (VEC), aliada às inteligências das polícias.
— Se fez um trabalho com essas lideranças que estavam ordenando as mortes, informando que em Pelotas não seria mais aceita essa situação de acertos de contas, através das mortes. Ocorreram transferências de lideranças importantes do município. Os principais beneficiados nesse processo foram os jovens. Nas mortes que envolvem os conflitos do tráfico quem mais morre é a juventude — explica a coordenadora executiva do Pacto Pelotas pela Paz, Aline Crochemore de Maicá.
Mudança de perfil
As mortes de jovens chegaram a representar 34,4% dos assassinatos em Pelotas, no primeiro semestre de 2018. Delegado regional, Marcio Steffens viu essa situação se alterar ao longo do tempo. O contexto dos crimes, antes maciçamente motivados pelo crime organizado, mudou. A média de idade das vítimas também aumentou – em 2015 chegou a ser de 26 anos e agora é de 40.
— Ainda se percebe o tráfico por trás dos homicídios, mas com percentual bem menor. Hoje tem mais fatos passionais, brigas de rua, não é mais tanto a vinculação com disputa por espaço de traficância, que antes a gente via. Já se percebe uma mudança muito grande em relação a essa motivação. O envolvimento de jovens, como vítimas e autores, diminuiu muito — garante.
Não tenho dúvidas de que isso, a ser mantido, muda o futuro da cidade. Muda a sociedade do futuro. Que a gente possa preservar a vida de jovens e, não só isso, mas integrá-los, levar oportunidades a eles. Temos vários projetos de prevenção que são focados nos jovens
PAULA MASCARENHAS
Prefeita de Pelotas
As ações de combate ao tráfico de drogas são vistas pelo comandante do 4° Batalhão de Polícia Militar, tenente Coronel Paulo Renato Scherdien, como essenciais para frear as mortes. Uma das medidas usadas pela BM foi "congelar" áreas envolvidas em homicídios. Sempre que uma morte ocorria, o local era tomado pelo policiamento, assim como o bairro da facção rival, para prevenir revanches e impactar nas ações.
— Se fizéssemos o congelamento somente na área da vítima, o outro grupo saía ganhando duas vezes. Conseguimos diminuir a disputa entre as facções. Os jovens estavam muito envolvidos nisso, e no comércio de drogas. Então, tivemos bons resultados na redução das mortes de jovens. Foi um trabalho integrado, de todos — explica o comandante.
Outra mudança percebida é a redução das mortes por arma de fogo. Segundo o Observatório de Segurança Pública e Prevenção Social de Pelotas, no primeiro semestre de 2017, 73% das 59 vítimas (43) morreram por disparos de arma de fogo. Neste ano, o percentual caiu para 50% – oito de 16 assassinatos registrados de janeiro a junho.
— Conseguimos reduzir a violência armada, retirar armas de fogo, o que diminui muito a letalidade e as revanches (entre facções), que eram grande problema. A cidade teve sucesso em reduzir esses confrontos e retirar os jovens desses enfrentamentos — analisa Kopittke.
Visão nova
O bairro Três Vendas, aquele onde o garoto de 12 anos foi baleado em 2017, naquele ano concentrou o maior número de assassinatos em Pelotas. Foram 39 vítimas, sendo que 12 delas tinham até 21 anos. De janeiro a junho deste ano, o bairro teve quatro mortes violentas e nenhuma delas com perfil jovem.
— Não tenho dúvidas de que isso, a ser mantido, muda o futuro da cidade. Muda a sociedade do futuro. Que a gente possa preservar a vida de jovens e, não só isso, mas integrá-los, levar oportunidades a eles. Temos vários projetos de prevenção que são focados nos jovens — afirma a prefeita de Pelotas Paula Mascarenhas (PSDB).
A decisão de buscar soluções para a segurança pública, por meio de ações municipais, veio ainda durante a campanha eleitoral de 2016, quando o tema apareceu entre os mais citados pelos moradores de Pelotas como preocupação. Na visão da prefeita, embora muitas vezes se tenha o entendimento de que cabe ao Estado promover a segurança, as gestões municipais têm papel essencial nisso.
— Não há como fazer educação ou saúde de qualidade no município que impera a violência. A gente olha para os presídios brasileiros e maior parte da população carcerária não tem ensino fundamental completo. De quem é a obrigação do ensino fundamental, se não dos gestores municipais? Temos sim responsabilidade. Dá para mudar sem grandes investimentos. Não passei a gastar milhões em segurança, foi muito mais uma mudança de mudança de visão, do que investimento financeiro — garante Paula.
Como prevenir
Criar camadas de proteção para crianças e adolescentes é outra área apontada como fundamental para impedir que os jovens se envolvam com os grupos violentos e se tornem autores e vítimas da violência. São iniciativas das quais se espera resultados a médio e longo prazos, mas seis anos depois Pelotas já consegue perceber mudanças. Um dos passos foi identificar em cada região da cidade os jovens que estavam no grupo de risco.
Os fatores vão se somando ao longo da vida de crianças e adolescentes. Mas, em muitos casos, se inicia com a violência familiar, e falta de ações que permitam à criança estabelecer laços afetivos, aprender a se relacionar e lidar com as próprias emoções. O abandono da escola é um dos momentos que amplia o risco.
— Um jovem não nasce assassino, delinquente, violento. São vários fatores familiares, escolares, comunitários, das políticas públicas que a gente erra para perder um jovem dessa maneira. Quando ele evade da escola, aí ele sai do radar das políticas públicas, o radar social. E aí vai reaparecer para o governo no radar das polícias. Esse jovem vai dando sinais ao longo da vida, e podemos intervir preventivamente — explica Alberto Kopittke, do Instituto Cidade Segura.
Um dos projetos aplicados em Pelotas, chamado Cada Jovem Conta, uniu diferentes áreas, como saúde, educação e assistência social, para monitorar cada um desses jovens em risco e tentar mudar a trajetória deles.
— Normalmente, eles ficariam para trás nas oportunidades. Mas houve um engajamento da sociedade em abrir portas, com cursos, oportunidades de primeiro emprego, aulas de música. Nessa ideia de disputar cada jovem. Com certeza, muitos mudaram de trajetória porque agimos antes — diz Kopittke.
Os principais riscos
Alguns fatores que devem acender alerta para adolescentes e jovens:
- Criança exposta à violência familiar e negligência.
- Falta de afeto e vínculos durante a infância, inclusive com a escola.
- Sem acesso a ações que ajudem a lidar com as emoções, desenvolver a empatia, afetividade, e a resolver conflitos sem violência.
- Falta de perspectiva para o futuro.
- Evasão escolar: quando abandona a escola.
- Acesso a drogas, tanto lícitas, como o álcool, como ilícitas.
- Contato com grupos violentos.
O que se pode fazer?
- Preparar pais e responsáveis para educar sem violência, com afeto.
- Ter programas voltados a infância e adolescência que permitem aprender a lidar com as emoções, resolver problemas, se comunicar e conviver sem violência.
- Criar um ambiente acolhedor e manter a criança e adolescente na escola o maior tempo possível.
- Acompanhar de forma individual cada jovem em situação de risco e estruturar ações integradas (saúde, assistência social, cultura, educação, etc).
- Ter programas específicos para jovens com comportamentos de risco para retornarem à escola e reduzir seus riscos.
- Ampliar oportunidades de perspectiva para o futuro (ensino e profissionalização) e priorizar jovens que já apresentam histórico de risco.
- Aplicar metodologias que já tenham sido testadas cientificamente.
Alguns projetos aplicados
- Educar Crianças em Ambientes Seguros
Orientou até hoje cerca de 800 cuidadores para educarem os filhos sem violência, com diálogo e afeto. O objetivo é criar relações saudáveis e construir ambientes seguros, reduzindo o risco de a criança reproduzir atos violentos no futuro.
- Cada Jovem Conta
Voltado aos jovens com fatores de risco, com foco na redução do abandono escolar, propicia acesso prioritário a serviços públicos e ao Mapa de Oportunidades. Contempla escolas municipais e estaduais, tendo impactado cerca de 480 crianças e adolescentes.
- Start
Tem como objetivo preparar adolescentes para o trabalho e construir projeto de vida, a partir de oficinas que abordam empreendedorismo social, liderança, comunicação. Já teve pelo menos 747 participantes.
- Esporte pela Paz
Projetos de incentivo ao esporte foram integrados com o objetivo de prevenir situações de violência e estimular a prática de atividades positivas e sadias, com foco na inclusão e diversidade. São sete ações integradas envolvendo crianças, jovens, adultos e idosos.
- Educação Empreendedora
O projeto, que teve mais de 20,5 mil jovens impactados, tem como objetivo o desenvolvimento das habilidades e competências para estimular comportamentos empreendedores, atributos e atitudes necessárias para a gestão da própria vida.
- Mão de Obra Prisional
Utiliza a mão de obra de presos para execução de obras, reformas, manutenção e prestação de serviços diversos em unidades públicas. Tem foco em reduzir custos, agilizar as melhorias