
Foram necessários quase 18 anos para que todos os réus de um ataque a judeus em Porto Alegre fossem julgados. A complexidade do caso, o número elevado de envolvidos e as possibilidades de recursos — previstos em lei — foram fatores que contribuíram para isso. O último júri, encerrado na madrugada de sábado (1º), deixa duplo sentimento: de que tudo poderia ter ocorrido de forma mais célere, mas também que o caso conseguiu levar de forma inédita ao Tribunal do Júri acusados de integrarem grupo de skinheads neonazistas. O processo é um dos marcos no enfrentamento aos crimes de ódio no Brasil.
A madrugada de 8 de maio de 2005 mal havia começado quando três jovens estudantes foram cercados e espancados em frente a um bar no bairro Cidade Baixa. Dois deles usavam quipás — acessório que simboliza a religião judaica. Antes de desferirem os socos, chutes e facadas, os skinheads esbravejaram que havia judeus no local. Uma das vítimas foi derrubada e era agredida no chão, enquanto parte do grupo fazia um paredão, impedindo que pessoas ao redor cessassem a violência. Quando os agressores cederam à pressão de quem tentava impedir o espancamento, e fugiram, além do jovem ensanguentado, restou caída no chão uma caixa de matzá (pão sem fermento), com escritos em hebraico.
Até hoje, Rodrigo Fontella Matheus, 44 anos, o mais espancado, inclusive com golpes de faca, sofre com as sequelas, especialmente psicológicas. No último julgamento, onde três réus responderam por tentativa de homicídio (dois deles absolvidos), disse que essa cicatriz nunca mais sai. Além dele, foram agredidos naquela madrugada Edson Nieves Santanna Júnior, esfaqueado no abdômen e no braço, e Alan Floyd Gipsztejn. Uma das testemunhas ouvidas no último júri, estudante de medicina na época, descreveu a cena que presenciou.
— Não chamaria de agressão. Que eu me lembre, parecia uma cena de filme de horror. Era um grupo de pessoas, uniformizadas, estraçalhando um cara no chão. (...) Parecia um grupo paramilitar. Eram carecas, todos, cabeça raspada. Mas demorou para cair a ficha, que era um crime de ódio. No momento que estava atendendo o rapaz, vi o escrito em hebraico (na caixa de pão), aí eu percebi que eram skinheads — disse.
Ao longo deste processo, nove réus foram levados ao Tribunal do Júri, sendo sete deles condenados — um teve extinta a pena porque o crime de lesão corporal já havia prescrito. Houve ainda um adolescente que cumpriu medida socioeducativa. No último julgamento, Leandro Maurício Patino Braun, 41, que não compareceu ao júri, foi condenado a 12 anos, 8 meses e 13 dias de prisão e dois réus — que negavam participação — foram absolvidos. Tanto Israel Andriotti da Silva, 41, como Valmir Dias Machado Júnior, 44, admitiram que chegaram a participar dos movimentos de skinheads. Na casa de Israel, foi apreendida série de materiais, como livros, bandeiras e cartões com símbolos nazistas.
— Foi um erro. Era um adolescente, inconsequente. Peço perdão para os meus amigos, para a comunidade judaica. Hoje sou uma pessoa diferente — disse o réu no júri, que negou ter participado das agressões e disse que estava em Guaíba, onde morava, naquela data.
Comunidade judaica
Vice-presidente da Confederação Israelista do Brasil (Conib), o advogado criminalista Daniel Bialski afirma que o caso ficou marcado especialmente pela violência empregada por um grupo movido pelo ódio. A gravidade das agressões levou o crime a ser considerado tentativa de homicídio contra um dos estudantes, espancado e esfaqueado. No entendimento da acusação, a intenção dos autores era matá-lo. Em relação às outras duas vítimas, o caso foi tratado como lesão corporal.
— Temos pelo Brasil diversos casos de discriminação, de racismo, mas não com esse cunho de tentarem matar as outras pessoas porque não gostam de judeus. Esse caso é emblemático, por conta disso. Felizmente, o Ministério Público e a Polícia Civil atuaram de forma brilhante. As pessoas foram identificadas e julgadas. Dois dos acusados foram absolvidos, mas isso não obsta que haja recursos. Vamos até a últimas instâncias, para tentar punir todos os envolvidos — afirma o representante da comunidade judaica.
Sobre a demora para chegar ao último júri, o criminalista pondera que o processo penal brasileiro necessita de reformas, mas enfatiza que atualmente o andamento seria mais célere. Em 2005, os processos ainda eram todos físicos. Atualmente, é possível realizar a tramitação, inclusive audiências, de forma online. Por outro lado, reconhece que a internet também se tornou meio empregado pelos próprios grupos que disseminam o ódio, até mesmo para arregimentar novos integrantes.
— Obviamente eles conseguem se comunicar mais rápido, ampliar a rede de adeptos, de cúmplices. Mas também a polícia brasileira tem que ser elogiada. Da mesma forma, consegue rastrear as ações, identificar essas pessoas, mapear, indiciar. Esses atos criminosos têm que ser combatidos, punidos com a mão forte da Justiça. Espero que, não só no RS, qualquer movimento similar seja descoberto, os autores sejam identificados, processados e condenados para que sirva de exemplo. Para que as pessoas entendam todo o mal que aconteceu no passado, que entendam que o Holocausto foi a maior tragédia da história da humanidade. Um milhão e meio de crianças foram assassinadas só porque pais e avós professavam a religião judaica. É inaceitável que alguém defenda isso — diz Bialski.
Em novembro do ano passado, um dos condenados nesse processo, Laureano Vieira Toscani, foi preso em Santa Catarina por suspeita de envolvimento em novo caso de apologia ao nazismo. Ele fazia parte de um grupo que foi localizado num sítio, onde estariam reunidos para articular a disseminação de racismo e ódio. A suspeita é de que o grupo esteja vinculado a outras organizações desse tipo fora do Brasil. Presidente da Federação Israelita do Rio Grande do Sul (Firs), Marcio Chachamovich vê com preocupação esse cenário. O advogado acredita que o longo tempo de processo acabou favorecendo os réus, e gerando sensação de impunidade.
— Eles pregam a morte, pregam o terror, isso que é o pior, principalmente nas redes sociais. Não que a justiça não chegue até eles, mas muitas vezes demora e acaba gerando sensação de impunidade, enquanto eles disseminam o ódio. Sabemos que esses grupos, com conexões internacionais, existem, estão aí, há várias células neonazistas no RS, no Brasil. Vejo com certa preocupação essa absolvição (do último júri), e meu sentir é de que o tempo acabou favorecendo os réus. E meu sentimento é de que não se mostrou que fez justiça — lamenta Chachamovich.
Acusação vai recorrer
Promotora de Justiça, Lúcia Helena Callegari concorda que o tempo transcorrido para chegar ao fim do processo impactou no resultado do último julgamento. Além de negar a autoria, as defesas dos réus exploraram o fato de que eles se afastaram desses movimentos e que hoje possuem vidas diferentes daquela época. A acusação acredita que isso fez diferença na decisão dos jurados, que condenaram somente Braun, o único a não comparecer ao plenário. O Ministério Público pretende recorrer. Sobre o caso, a promotora ressalta que em três julgamentos, nos quais constavam nove réus, houve sete condenações e que isso é uma forma de inibir novos crimes desse tipo.
— Esse caso aconteceu num 8 de maio de 2005, 60 anos após o fim do Holocausto. Era um marco para esses grupos neonazistas. E a polícia conseguiu investigar, e levar a um enfraquecimento desses grupos. A decisão de absolvição hoje está muito vinculada à questão temporal, e não probatória. Muitos anos se passaram. Fatos como esse não podem cair no esquecimento. Não temos como voltar ao passado, mas podemos reescrever o futuro. A punição serve de exemplo para que essas ações não se repitam — argumenta.
A advogada Helena Druck Sant'Anna é uma das assistentes de acusação, que representa as vítimas no processo desde o início do caso. Embora reconheça que houve lentidão no processo, acredita que obter uma condenação tanto tempo após o crime também demonstra que os autores de crimes de ódio podem ser responsabilizados.
— Nada justifica esse tempo de processo: 18 anos. É uma demonstração de que não funcionou adequadamente, dentro daquilo que se espera diante de um crime brutal. Claro que a demora no processo pode dar a sensação de impunidade. Mas quem está sendo processado também sente que pode responder por seus crimes. Esse caso foi o primeiro levando os réus a júri popular por crimes de ódio. Essa condenação vir nesse momento talvez tenha efeito pedagógico de que pode demorar, mas virá — diz a advogada, que alerta para o aumento da presença de grupos neonazistas nos últimos anos.
Helena é filha de Helio Neumann Sant’Anna, advogado de origem judaica, que teve papel pioneiro no combate à discriminação, ao auxiliar a conceber a definição do tipo penal do crime de racismo no Brasil. A legislação, sancionada em 1990, chamada de Lei Antirracismo, embasou a decisão de condenar Siegfried Ellwanger, que publicava livros negando o Holocausto. Há quatro anos, a lei passou a abranger também a homofobia.
— Todos eles possuem sequelas, que acredito que sejam irreversíveis. Mesmo transcorridos esses anos 18 anos, é um marco na vida dessas pessoas. Possuem marcas físicas e psicológicas, que se refletem no dia a dia — afirma a advogada sobre as vítima do ataque na Cidade Baixa.
Os grupos hoje
Ao longo desses quase 18 anos, o cenário dos grupos extremistas também se alterou no país. Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora e Coordenador do Observatório da Extrema Direita, Odilon Caldeira Neto explica que até os anos 2000 o neonazismo se sedimentava em duas faces: o negacionismo do Holocausto e a atuação de grupos skinheads com essa ideologia. Atualmente, percebe, além da intensificação da disseminação desse discurso e da diversificação de grupos envolvidos, a internacionalização, especialmente por meio da internet e redes sociais.
— Muitos deles não são mais formados na compra de livros negacionistas, em sebos ou livrarias, nem mais pelo processo de formação política, mediante grupos juvenis urbanos, especialmente os skinheads. Tratamos hoje de um processo de formação e radicalização política sobretudo sob meios digitais, tanto em fóruns obscuros, a dark ou deep web, como pela disseminação de conteúdo de ódio, extremismo nas redes sociais de maneira aberta, e da importação a partir de grupos estrangeiros, de um conglomerado internacional do neonazismo, inclusive de células terroristas. Esses grupos vão se fortalecendo, interagindo e pensando estratégias autônomas de atuação — analisa o especialista.
Entendo que é necessário rediscutir um pouco as questões sobre símbolos de ódios e pensar também o processo de educação sobre o extremismo.
ODILON CALDEIRA NETO
Observatório da Extrema Direita
Caldeira Neto alerta ainda para o fato de que a discussão sobre a questão jurídica do uso de símbolos nazistas e da disseminação de material negacionista do Holocausto ainda está muito direcionada à forma como esses grupos se organizavam no início do século XXI, necessitando de uma atualização. No período atual, segundo o historiador, esse movimento é mais diversificado, utiliza novas simbologias, e não somente os clássicos, e tem impacto muito maior na sociedade, em comparação ao que ocorria décadas atrás. Ele ressalta que a discussão precisa passar, inclusive, pelas formas de educar contra o extremismo.
— Entendo que é necessário rediscutir um pouco as questões sobre símbolos de ódios e pensar também o processo de educação sobre o extremismo. Ou seja, quais são os símbolos que são catalisadores do extremismo de direita? Não é apenas a suástica. A suástica é uma ponta. A suástica é o elemento mais visível da utilização de símbolos do extremismo de direita. Existe uma gama diversificada de simbologias, que precisam ser em certa medidas enquadradas ou mesmo interpretadas do ponto de vista jurídico e educacional — detalha.
Contrapontos
O que diz a defesa de Israel Andriotti da Silva
Os advogados José Paulo Schneider dos Santos, Matheus da Silva Antunes e João Augusto Ribeiro Kovalski enviaram nota. Confira:
"A defesa de Israel recebe com tranquilidade a decisão soberana do Conselho de Sentença, que, após quatro dias de muito trabalho, reconheceu a sua inocência, por negativa de autoria. Os jurados e juradas de Porto Alegre, diligentes e atenciosos, após analisarem detidamente as provas, perceberam aquilo que Israel vem tentando dizer há 18 anos: ele não estava na data e no local dos fatos. Foram 18 anos de um processo doloroso, sensível e injusto. Trata-se, sem sombra de dúvidas, de um dos maiores erros do poder judiciário gaúcho. Um inocente foi acusado de um crime bárbaro a partir de uma foto 3x4, retirada dois anos antes do crime. Foi claro e em bom tom o recado dos jurados e juradas, que, alinhados com a jurisprudência do STJ e do STF, disseram basta para a falida praxe de reconhecimentos fotográficos, verdadeira máquina de gerar erros de reconhecimento e injustiças judiciais. Embora muitas pessoas, inclusive detentoras de cargos públicos importantes, tenham tentado silenciar a voz de Israel, os corajosos jurados e juradas restabeleceram a verdade e declararam sua inocência. Esperamos, agora, que o MP/RS respeite a soberania do Júri. Não é possível que o MP/RS siga nessa perseguição injusta e indevida a um inocente. É chegada a hora de o MP/RS respeitar a jurisprudência das cortes superiores, que invalidam reconhecimentos fotográficos, e, principalmente, a decisão soberana dos jurados e juradas do caso. O próprio MP/RS muito criticou a demora deste caso. A decisão foi dada após quatro dias de intenso trabalho. Cabe agora respeitá-la e ser coerente com a crítica da demora processual, colocando fim a esse doloroso processo, que recebeu uma justa e irretocável decisão. Este erro judiciário se arrasta há 18 anos. Cabe ao MP/RS permitir que essa tortura processual na vida de um inocente chegue ao fim."
O que diz a defesa de Valmir Dias da Silva Machado Junior
A defesa, representada pelos advogados Manoel Pedro Silveira Castanheira e Gustavo Saar Gemignani, afirma que está satisfeita com a decisão dos jurados. Os advogados enviaram nota, na qual afirmam:
"Conseguimos demonstrar ao Conselho de Sentença as provas que estavam desde o início das investigações, há mais de 18 anos, e que comprovavam a inocência de Valmir, por ausência de participação no fato. Em nenhum momento se defende o antissemitismo ou qualquer ideologia de exclusão racial, de gênero ou opção. Valmir não cometeu o fato e comprovou isso! Condená-lo seria injusto.”
O que diz a defesa de Leandro Patino Braun
O advogado Rodrigo de Lima Noble informou que irá recorrer da sentença, mas que só se manifestará sobre o caso nos autos do processo.