
Um estado mental em que há uma sensação de desconexão das outras pessoas: o indivíduo não consegue se relacionar com grupos sociais e sente que não tem uma rede de apoio significativa.
É assim que pesquisadores definem a solidão, um sentimento que vem atingindo cada vez mais a população, a ponto de tornar-se um problema de saúde pública.
Alguns governos chegaram a estabelecer políticas públicas para mitigar essa questão. Reino Unido e Japão, por exemplo, criaram "Ministérios da Solidão" em 2018 e 2021, respectivamente. Na América do Sul, ainda não existe nenhuma iniciativa governamental endereçando esse problema especificamente.
Um estudo publicado neste mês na revista científica Nature Medicine revela que a solidão é um dos fatores de risco que podem aumentar o risco de mortalidade precoce.
Contudo, ainda falta descobrir se esse é um efeito direto da solidão, que afeta o bem-estar, ou se isso se deve ao fato de que pessoas solitárias tendem a praticar menos atividades físicas e não ter uma dieta balanceada.
No Brasil, não há pesquisas robustas sobre a prevalência da solidão entre a população, mas há estudos que são indicativos do problema. Cerca de 26% dos brasileiros enfrentam solidão, conforme trabalho realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em 2020 com 8,1 mil participantes.
Conduzido pelo pesquisador e psiquiatra Thyago Antonelli-Salgado, é o primeiro estudo longitudinal a avaliar os preditores clínicos e de estilo de vida da solidão em adultos de um país de rendimento baixo ou médio com caraterísticas de sociedade coletivista.

Fatores de risco
Mesmo sendo um país com a cultura da coletividade, o Brasil também vem sofrendo com esse problema. Isso porque, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, o sentimento de solidão não é causado pelo isolamento por si só, mas sim por uma série de fatores individuais.
— A solidão não é um estado físico, é um estado psíquico. O indivíduo pode estar no meio de muita gente, ou ter a maior rede de apoio do mundo, e se sentir solitário mesmo assim. É uma sensação de não pertencimento — explica o psiquiatra do Hospital São Lucas e professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Lucas Spanemberg.
Da mesma forma, há pessoas que, mesmo sozinhas, não lidam com esse sentimento. Após acompanhar 473 pacientes por dois anos, uma equipe de pesquisadores da UFRGS constatou que sintomas de depressão e ansiedade, consumo excessivo de álcool e uso de cannabis são fatores de risco para a solidão. É o que mostra o estudo, publicado em dezembro no Journal of Psychiatric Research.
A pesquisa também mostra que, no Brasil, pessoas com maior poder aquisitivo se sentem mais solitárias, fenômeno que não se repete em países desenvolvidos. Segundo Antonelli-Salgado, doutorando da UFRGS que lidera a pesquisa, o objetivo foi entender o que leva as pessoas a sentirem solidão.
— Qualquer estímulo de desconexão pode gerar um sentimento maior de solidão. Essa dor psicológica nasce da discrepância entre as relações sociais que a pessoa deseja ter e as relações sociais que a pessoa percebe estar tendo — afirma.
Validação externa
De acordo com ele, o estudo foi realizado com adultos acima dos 18 anos, mas tanto as pessoas idosas quanto os adultos mais jovens apresentaram maior propensão para o desenvolvimento da solidão. Embora seja comumente associada às pessoas idosas, por conta da perda dos vínculos ao longo da vida, a solidão pode trazer impactos negativos a indivíduos de qualquer faixa etária.
No caso das pessoas mais jovens, conforme os especialistas, trata-se de uma etapa da vida em que os sujeitos estão passando por um processo de autoconhecimento. Com isso, os jovens consideram importante fazer parte de grupos para sentirem que há validação externa. Quando a pessoa não consegue isso, pode se sentir solitária.

Solidão crônica
Diferentes estudos associam a solidão ao aumento da predisposição para doenças crônicas. Ter conexões significativas é essencial para o bem-estar e, quando isso não acontece, diversos problemas de saúde podem ser desencadeados.
Pesquisas apontam que a solidão está ligada a uma maior resposta inflamatória no organismo. Ou seja, quando sentimos isso, nosso corpo entra em um estado de alerta, causando alterações físicas.
Quando o corpo se prepara para lidar com uma ameaça, há modificações no organismo. O problema, de acordo com Spanemberg, da PUCRS, é quando o indivíduo sofre com solidão crônica. Quando isso se torna uma constante, o corpo pode entrar em saturação por ficar com esse "alerta" ligado o tempo todo, e nossos recursos vão se esgotando, reduzindo a nossa capacidade de combater infecções.
— Isso vai em direção à nossa natureza gregária. O ser humano tem esse caráter, nós vivemos em grupos. A solidão envolve esse estado psicológico em que, por alguma razão, a gente não consegue pertencer a nenhum grupo. Isso causa estresse, ansiedade. Com isso, o organismo tem demandas adaptativas — explica o psiquiatra.
Hábitos prejudiciais
Sedentarismo, obesidade, aumento do colesterol e doenças cardiovasculares são condições resultantes disso. Situações de estresse provocam alterações no metabolismo, no sistema imunológico e no equilíbrio hormonal. Como consequência dessa desregulação, diversos desfechos de saúde podem surgir, conforme os pesquisadores.
A própria depressão, que pode intensificar o sentimento de solidão e o processo de isolamento, contribui para que as pessoas se sintam infelizes e deixem de sentir prazer em encontros com amigos e familiares.
Muitas vezes, a doença também faz com que o indivíduo tenha o sono prejudicado e deixe de praticar atividades físicas, além de adotar hábitos prejudiciais à saúde, como o tabagismo. Tudo isso aumenta as chances de desenvolver doenças cardiovasculares.
O indivíduo pode estar no meio de muita gente, ou ter a maior rede de apoio do mundo, e se sentir solitário mesmo assim
LUCAS SPANEMBERG
Psiquiatra do Hospital São Lucas e professor da Escola de Medicina da PUCRS
Ciclo vicioso
Como seres sociais, também precisamos de interações com outras pessoas para manter o cérebro ativo. A longo prazo, o isolamento social pode levar ao envelhecimento acelerado, contribuindo para o desenvolvimento de doenças neurodegenerativas.
Ou seja, trata-se de um ciclo vicioso que deve ser observado antes de se tornar um quadro mais grave, segundo os especialistas. Caso o paciente perceba que está tendo impactos negativos na vida por conta da solidão, é preciso buscar avaliação profissional.
— Há estudos que comparam esse problema, de não ter uma rede de apoio consistente, com outros tipos de fatores de risco, como pressão alta e tabagismo. Não ter conexões de qualidade é um fator de risco tão importante que pode levar ao aumento da mortalidade. Pessoas solitárias vivem menos. Não são apenas desfechos psiquiátricos, mas de saúde como um todo — ressalta Spanemberg.
Há diversas evidências científicas disso, divulgadas há anos. De acordo com uma pesquisa de 2010 liderada por John Cacioppo, que foi professor de Psicologia na Universidade de Chicago, o sentimento de solidão profunda pode aumentar em 14% o risco de morte precoce em pessoas idosas. O levantamento foi feito com base em uma pesquisa com 20 mil pessoas.
Conectados, mas solitários

À medida que a sociedade se torna mais conectada, com a possibilidade de interagir com pessoas do mundo todo a qualquer momento por meio das ferramentas digitais, surgem mais problemas ligados à solidão.
Prova disso foi a pandemia de covid-19, que levou ao isolamento social compulsório e evidenciou a importância das relações sociais, com uma explosão de problemas de saúde mental, mesmo com o auxílio da tecnologia para manter as relações.
Publicada em dezembro, uma pesquisa da Baylor University, dos Estados Unidos, demonstra que, ao longo do tempo, o uso das redes sociais causa uma percepção maior da solidão. Realizado ao longo de nove anos, acompanhando mais de 6,9 mil adultos holandeses, o estudo investigou o uso das redes sociais de duas formas — ativa e passiva, ou seja, com ou sem interações.
A conclusão é que mesmo no caso de participantes que fizeram um uso mais ativo das plataformas, ou seja, engajando-se em interações sociais, como a troca de mensagens, há uma relação entre essa utilização das redes sociais e a solidão. Ou seja, mesmo estando imersos em interações digitais, nos sentimos desconectados, muitas vezes.
Vida "perfeita" nas redes sociais
Afinal, a tecnologia é uma vilã nessa equação?
Segundo a psicóloga clínica Sofia Sebben, especialista em uso de telas, o problema não é a tecnologia em si, mas sim a forma como a utilizamos e como lidamos com o conteúdo que consumimos nas redes:
— Não só influenciadores digitais, mas as pessoas como um todo têm um comportamento que não é realista nas redes sociais. A gente não posta tudo da nossa vida, e tudo bem. Mas postar somente uma versão, uma vida perfeita nas redes, pode fazer com que pessoas mais sensíveis se sintam solitárias. Pode bater nelas de uma forma mais intensa.
De acordo com Sofia, isso ocorre principalmente com pessoas que têm a tendência de se isolarem ou que já tenham um quadro clínico relacionado, como depressão.
Para um jovem que não tem uma rede de apoio estável pode causar sofrimento ver postagens de pessoas aproveitando o Carnaval ou viajando com os amigos, por exemplo.

Aliados dos idosos
Por outro lado, para muitos indivíduos, as redes sociais são capazes de promover uma sensação de pertencimento. Para aqueles que são mais introvertidos e têm dificuldade de criar laços na escola, na faculdade ou no trabalho, por exemplo, criar vínculos digitais pode contribuir de forma positiva para a saúde mental e combater a solidão.
— Se a pessoa conseguir se engajar em um grupo, mesmo que seja em uma comunidade com poucas pessoas, mas com as quais ela consegue se abrir e se identificar, não acho que seja negativo. Evidentemente, quanto mais tempo passamos nas telas, menos viveremos experiências na vida real, que fazem toda a diferença para o ser humano — argumenta Sofia.
Da mesma forma, os recursos digitais podem ser aliados de pessoas idosas no combate à solidão, segundo Antonelli-Salgado. O pesquisador ressalta que, no caso de idosos que vivem em instituições de longa permanência, usar a tecnologia para manter os vínculos com amigos e familiares é uma boa alternativa.
Postar somente uma versão (de nós), uma vida perfeita nas redes, pode fazer com que pessoas mais sensíveis se sintam solitárias
SOFIA SEBBEN
Psicóloga clínica, especialista em uso de telas
Qualidade de vida
Além de investigar os fatores de risco para a solidão, o estudo da UFRGS liderado por Antonelli-Salgado identificou aspectos que previnem que os indivíduos desenvolvam esse sentimento. Praticar atividade física, cultivar relacionamentos saudáveis e ter sono de qualidade são aspectos de proteção.
A atividade física pode ter um efeito anti-inflamatório e redutor do estresse, bem como o sono, que contribui para a manutenção de boas relações interpessoais. Ter conexões sociais estáveis é essencial, segundo os pesquisadores. Spanemberg, da PUCRS, explica:
— As relações sociais compõem uma dimensão absolutamente importante, que vai ao encontro da nossa natureza. Nos sentimos bem com outras pessoas, precisamos ser validados, ter a sensação protagonismo, e isso impacta a qualidade de vida.

Novas relações
Caso o sujeito já esteja enfrentando esse sentimento, os especialistas ressaltam que é importante criar oportunidades para que haja interação social e ter um papel ativo nesse processo. Antonelli-Salgado afirma:
— Não adianta ficar passivamente esperando as pessoas te procurarem para se conectar. Precisamos separar um tempo na rotina para isso, manter o contato com quem a gente já conhece, mas também estar aberto a novas relações, já que, naturalmente, vamos perdendo alguns vínculos ao longo da vida.
Da mesma forma, ficar só não deve ser entendido como algo necessariamente ruim. É igualmente importante aprender a gostar da própria companhia, evitando a dependência emocional em relação a outros indivíduos. De acordo com Sofia Sebben, nos casos de pessoas que sofrem com esse problema, é necessário identificar o que causa essa dificuldade de se conectar consigo mesmo.
— Vale a pena explorar e investir em atividades que gosta de fazer. Correr, ir na academia, coisas que só a gente pode fazer por nós mesmos. Ir a uma aula de música, de cerâmica — explica.