Natália Mansan (*)
Ser criança em 2024 é bem diferente de ser criança décadas atrás. As crianças da atualidade têm acesso a muitas informações, e não estou falando do uso das telas aqui, essa é outra discussão: estou falando de informações ouvidas e observadas por todos que as cercam.
É provável que a criança de 2024 já tenha presenciado algum desastre natural. Visto com os próprios olhos, ou, aos menos, por meio dos adultos. Elas não têm a mesma tranquilidade da criança do passado, quando, por exemplo, uma chuva se apresenta, quando inicia um vendaval, quando o tempo fecha. É provável que a criança de 2024 tema quando perceber estes sinais.
A criança de 2024 já ouviu falar em guerra. Já esteve em contato com alguma imagem, relato ou reportagem que mencionou países que se levantam contra outros países, dizimando vidas.
A criança de 2024 observa adultos muito furiosos e intolerantes. No trânsito, no supermercado, no shopping ou no estacionamento do condomínio. Ela percebe, de todos os lados, adultos que não sabem se relacionar. Ela percebe violência, agressividade e falta de empatia.
A criança de 2024 certamente já vivenciou na sua família ou soube que, na família do coleguinha de aula, um avô, uma tia, um pai ou uma prima morreu ou se curou do câncer. A doença é conhecida por eles. E por vezes questionada, pelo fato de alguns não resistirem a ela, e outros, sim.
A criança de 2024 é resiliente. É provável que ouça os adultos reclamando do preço dos alimentos, do combustível, do material escolar e por aí vai. É provável que ela saiba que adultos vivem controlando seus rendimentos para contemplar todas as necessidades da família — e assim colabore com seus cuidadores.
A criança de 2024, provavelmente, atravessou junto com seus familiares uma pandemia. E nesse período se adaptou às novas medidas de proteção, acompanhou a espera da vacina e sentiu medo da doença, na melhor das hipóteses.
A criança de 2024 certamente conhece a desigualdade social e observa por aí indícios de fome e miséria.
A criança de 2024 percebe a forma como o mundo trata as mulheres, os negros, as pessoas com deficiência e as próprias crianças. Ela observa e vai tirando suas conclusões sobre tudo. Ela percebe todas as diferenças e vai aprendendo sobre como toda essa engrenagem de se relacionar funciona.
A criança de 2024 não brinca na rua e não anda de bicicleta sem um adulto estar acompanhando. Ela não conhece a liberdade de ser criança, sem medo. É provável que ela tenha medo de assalto, tenha medo de se perder ou tenha medo de ser roubada. Pode ser que ela use um GPS bem discreto em formato de relógio ou tenha um adulto sempre muito atento a todos os seus movimentos, quando exposta ao coletivo.
A criança de 2024 observa adultos muito furiosos e intolerantes. No trânsito, no supermercado, no shopping ou no estacionamento do condomínio. Ela percebe, de todos os lados, adultos que não sabem se relacionar. Ela percebe violência, agressividade e falta de empatia.
A criança de 2024, provavelmente, observa em seu núcleo familiar adultos que reclamam de suas profissões, que sobrevivem a jornadas extensas de trabalho e que estão sempre cansados.
E assim as crianças de 2024 vão criando suas visões de mundo. Vão aprendendo, por meio de modelos que observam, os comportamentos esperados para cada ocasião. Vão sentindo e agindo conforme os adultos, que não conseguem esconder as adversidades da vida para esses pequenos, que há pouco iniciaram suas jornadas neste mundo.
A infância naturalmente é um período de grande capacidade imaginativa. A criança pequena observa tudo com lentes de aumento, devido a sua capacidade de imaginação. Uma fase da vida com um potencial criativo imenso. Não é difícil ouvir relatos de pessoas que, na vida adulta, tiveram a experiência de retornar a lugares frequentados na infância e perceber os espaços de forma muito diferente. Pareciam tão grandes quando eram crianças, e quando depararam com eles na vida adulta, eles eram pequenos e simples. Gandhy Piorski fala sobre a capacidade das crianças de dimensionar espaços devido a sua potência imaginal: "Os lugares perdem a fixidez do tamanho, crescem largamente, aumentam suas proporções e gravam na memória da criança o superespaço, o espaço fantástico, o lugar do sonho. A grande capacidade que tínhamos, quando crianças, de absorver e amplificar a topologia familiar, a espacialidade cotidiana, não ocorria apenas porque éramos pequenos e os tamanhos nos saltavam em proporções maiores, mas porque a potência imaginal da criança, sua imaginação geométrica, molda, redimensiona o mundo, aprofunda os espaços".
Com toda essa capacidade imaginativa, como será que são encaradas essas notícias trágicas com que nossos pequenos têm tido inevitável contato? Não é à toa que percebemos nos ambientes educacionais a imensidade de sintomas de ansiedade.
Há quem diga que a criança de hoje em dia é muito protegida, que vive nas telas, que é privilegiada, que faz parte da "geração mimimi". Eu discordo, acho que a geração que vem vindo aí é resiliente e tem sido desafiada diariamente. A vida cobra que seja forte e corajosa. Mas não deveria ser assim, e lamento muito por suas infâncias.
O desafio da parentalidade atual, certamente, está relacionado com o equilíbrio entre dar informações que as protejam, mas que não tornem a infância cinza.
Segundo o filósofo e educador Rudolt Steiner, fundador da pedagogia Waldorf, toda criança, no período da primeira infância, deveria sentir que o mundo é bom. E percebendo essa bondade e o cuidado que recebe, ela armazenará um tanto de bondade que a fortalecerá nos próximos ciclos.
Que em meio a esse turbilhão de dificuldades, nossos pequenos possam encontrar uma mãe, um pai, uma avó, um professor ou qualquer outra pessoa que lhes ofereça esperança. Que o mundo seja bom para essa nova geração, nem que seja em alguns momentos. Que a infância seja preservada por adultos comprometidos nesta missão. E que os nossos pequenos não percam, jamais, a leveza e o encantamento dessa linda fase da vida!
(*) Pedagoga, especialista em Gestão da Educação, autora de livros infantis e mãe da Betina (seis anos)