A penicilina, o primeiro antibiótico do mundo, trouxe alento à medicina. A existência de um medicamento capaz de matar bactérias causadoras de diversas doenças representou um importante avanço, digno do Prêmio Nobel. Agora, quase 90 anos depois, a descoberta de Alexander Fleming é protagonista de um dos problemas que mais perturbam a comunidade médica: a resistência bacteriana.
Mal usados, os antibióticos estimularam os mecanismos de defesa das bactérias, que estão cada vez mais fortes. Caminhando muito mais rápido do que o desenvolvimento de novas drogas, o problema tomou proporções globais: em 2050, deve causar a morte de 10 milhões de pessoas, de acordo com uma pesquisa desenvolvida no Reino Unido em 2014. Isso significa que as bactérias podem causar mais óbitos do que o câncer e as doenças cardiovasculares em um futuro próximo.
Dada a emergência da questão, pesquisadores correm contra o relógio para frear o avanço das superbactérias, em um trabalho conjunto entre organizações de saúde humana e animal. Essa discussão multissetorial foi um dos principais temas de debate do 20º Congresso Brasileiro de Infectologia, que ocorreu em setembro no Rio de Janeiro. A reportagem de Zero Hora acompanhou o encontro.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) também está atenta ao problema. A entidade apresentou, em maio de 2015, um plano de ação global que pretende assegurar o tratamento bem-sucedido e a prevenção de doenças infecciosas em todos os cantos do planeta. Dentre os objetivos do texto, destacam-se a promoção do uso rigoroso de medicamentos antimicrobianos — tanto em humanos quanto em animais — e o reforço no conhecimento do problema por meio de ações de vigilância e pesquisa.
— Quando a gente fala em pesquisa e desenvolvimento, não significa que estamos buscando novos antibióticos. Alguns traduzem assim frequentemente, mas é um equívoco. O que precisamos são novos diagnósticos e opções aos antibióticos. Temos de buscar soluções que deem alternativa para esse modelo — observa a coordenadora da Rede de Vigilância Global de Resistência aos Antimicrobianos da OMS, Carmem Lúcia Pessoa da Silva.
Consequências até para o PIB globlal
Estudo realizado pelo economista Jim O’Neill, encomendado pelo governo do Reino Unido e divulgado em 2014, mostrou que a resistência bacteriana deve matar mais do que o câncer em 2050. De acordo com a pesquisa, o problema afetará pessoas economicamente ativas, impactando o Produto Interno Bruto (PIB) mundial.
– Agrava-se a situação porque vai morrer gente jovem, não só idosos. Vai morrer aquele paciente no qual a gente investiu no transplante, para quem buscamos um coração lá na Amazônia mas que, no pós-transplante, vai ter uma bactéria que cause a sua morte – observa Flávia Rossi, da USP.
Por que não há novos antibióticos
Já se passaram 30 anos desde que a última classe de antibióticos foi lançada no mercado, os Carbapenens. Oito anos depois da liberação do medicamento, em 1993, já foi identificada a resistência à substância. De lá para cá, o que a indústria tem feito para combater as bactérias resistentes é aprimorar drogas antigas, adicionando ou combinando novas substâncias à formulação.
Para acelerar a criação de medicamentos, o Food and Drug Administration (FDA), órgão norte-americano semelhante à Anvisa, tem dado incentivos para quem descobrir novas substâncias. Mas essa não parece ser a única maneira de impedir o aumento das superbactérias.
– Sou esperançosa em relação aos novos antimicrobianos, no entanto, esses microrganismos são mais adaptáveis que nós. É meio burro você querer ter um novo antibiótico, se o que precisamos mesmo fazer é cuidar da saúde para ter menos infecções – avalia Ana Cristina Gales, complementando que muitas indústrias evitam investir nesses produtos:
– Às vezes, se leva 10 ou 15 anos para desenvolver o medicamento e, quando ele é lançado, já tem resistência.
O que está sendo feito
Na tentativa de frear a resistência bacteriana, a Organização Mundial da Saúde (OMS) cobra das nações a elaboração de planos para conter a situação. Além disso, a entidade já emitiu uma lista com nomes de antibióticos críticos para uso em animais.
Embora haja um longo caminho pela frente, um editorial publicado em maio deste ano pela revista científica The Lancet trouxe os primeiros resultados desse trabalho. Pesquisa realizada com 145 governos, apresentada na 70ª Assembleia Mundial para Saúde, apontou alguns progressos: 77 países já apresentaram planos multissetoriais para combater a resistência bacteriana. Outros 57 estão em processo de desenvolvimento.
É o caso do Brasil, que criou o Plano de Ação Nacional de Prevenção e Controle de Resistência aos Antimicrobianos. Ainda em fase de revisão, o documento prevê ações de vigilância na área da saúde, além de maior rigor no uso de medicamentos no campo. Por essa razão, o plano foi elaborado em uma parceria dos Ministérios da Saúde, da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e do Meio Ambiente.
– Esse documento tem pontos positivos, um deles é que é interministerial. O ponto fraco é que ainda não foi assinado. Ele vem sendo revisado constantemente. A gente espera que os ministérios finalizem a revisão e assinem portaria dizendo que o plano vai ser colocado em prática – opina Ana Cristina Gales, coordenadora do Comitê de Resistência Bacteriana da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
De acordo com o diretor do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde, João Paulo Toledo, o governo trata como prioridade a criação de um sistema de vigilância nacional para a resistência bacteriana, que contemple o desenvolvimento de modelos de vigilância e também o fortalecimento dos laboratórios de diagnóstico.
Uma das formas mais eficazes de combater as infecções ou mesmo a resistência bacteriana é a vacinação. A imunização protege das doenças e evita que se faça o uso exagerado de antibióticos. Outro fator importante é a menor exposição de pacientes ao ambiente hospitalar.
Lessandra Michelin, Coordenadora do Comitê Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), dá o exemplo da vacina pneumocócica, que protege contra pneumonias e meningites:
– A vacina evita a doença, impedindo o surgimento de complicações importantes, que muitas vezes requerem internação hospitalar e deixam o paciente exposto às superbactérias.
O que eu posso fazer?
Lavar bem as mãos é o primeiro passo que você pode dar para evitar a proliferação desses microrganismos tão perigosos. Flávia Rossi, diretora do Laboratório de Microbiologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), também orienta que nunca seja feito mau uso de medicamentos, especialmente sem indicação médica.
– Por outro lado, temos que restabelecer a confiança com o médico e entender que o antibiótico pode ser bom, mas pode ser muito ruim. Ao visitar um médico e ele disser que não há por que usar esse tipo de medicamento, confie – diz.
Evitar o uso de produtos químicos desnecessários no dia a dia, consumir alimentos limpos e de fontes limpas são outras sugestões da especialista para melhorar essa relação.