
O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou nesta quarta-feira (16), no Diário Oficial da União, uma resolução que revisa critérios éticos e técnicos para o atendimento a pessoas com incongruência ou disforia de gênero. Na prática, a medida restringe o acesso de crianças e adolescentes trans a terapias hormonais.
A decisão gerou repercussão e críticas de entidades médicas, organizações da sociedade civil e famílias de pessoas trans. O Ministério Público Federal (MPF) abriu um procedimento para apurar a legalidade da resolução.
De acordo com o presidente do CFM, Hiran Gallo, os médicos que não cumprirem a determinação do conselho poderão sofrer punições como advertência, censura, suspensão e até cassação do registro.
— É uma norma do Conselho Federal de Medicina que tem que ser cumprida — disse.
O texto define como incongruência de gênero uma discordância acentuada e persistente entre o gênero vivenciado por um indivíduo e o sexo atribuído, sem necessariamente implicar sofrimento.
Já a disforia de gênero é definida pelo documento como grave desconforto ou sofrimento causado pela incongruência de gênero.
O que diz a resolução
A resolução 2.427/2025 foi publicada na edição desta quarta do Diário Oficial da União, com efeito imediato. Ela proíbe o bloqueio hormonal para crianças e adolescentes e define que o tratamento hormonal cruzado só pode ser feito a partir dos 18 anos. Antes, a regra autorizava o bloqueio e permitia o tratamento hormonal a partir dos 16 anos.
Além disso, a norma amplia para 21 anos a idade para realização de cirurgia de redesignação sexual quando esta resultar em esterilização. Pela resolução anterior, editada em 2019, o procedimento poderia ser feito a partir de 18 anos. Pessoas que já estão com os tratamentos em curso não serão afetadas pelas novas regras.
Conforme Gallo, a resolução tomou como base evidências científicas que mostraram aumento no número de arrependimentos em relação ao processo de transição de gênero, e casos de tentativa de reversão do processo de transição. Ele disse, porém, que a norma também levou em consideração pesquisas que mostram o contrário, que o índice de arrependimento é baixo.
Os bloqueadores hormonais são medicamentos que interrompem temporariamente a puberdade, impedindo o desenvolvimento de características secundárias, como crescimento de pelos ou mudança na voz. No caso de adolescentes trans, esse tipo de tratamento é utilizado para dar tempo ao jovem refletir sobre sua identidade de gênero antes de alterações corporais irreversíveis.
Diversas entidades médicas e organizações de direitos humanos defendem o uso dos bloqueadores como parte do protocolo de cuidado à saúde de jovens trans, ressaltando que os efeitos são reversíveis e que o tratamento reduz drasticamente quadros de sofrimento psicológico.
Já a terapia hormonal cruzada é usada para que a pessoa adquira características do gênero com o qual se identifica.
O relator do texto, ginecologista Rafael Câmara, citou estudos internacionais que indicam riscos do uso prolongado de bloqueadores hormonais, como impacto na densidade óssea, fertilidade e desenvolvimento neurológico.
— Está havendo um sobrediagnóstico. Mais crianças e adolescentes estão sendo diagnosticados com disforia de gênero e levados a tratamento. Muitas crianças que no futuro poderiam não ser trans, mas simplesmente gays e lésbicas — disse.
MPF apura legalidade; entidades falam em "retrocesso"
Após a publicação, o MPF abriu um procedimento para apurar possíveis ilegalidades na resolução do CFM. O órgão vai avaliar se a norma viola diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), tratados internacionais assinados pelo Brasil e direitos fundamentais garantidos na Constituição, como o acesso à saúde e o respeito à identidade de gênero.
A investigação foi motivada por representações da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e da Associação Mães pela Diversidade. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão também acompanha o caso e pode solicitar a suspensão da medida, caso entenda que ela represente violação de direitos humanos.
A publicação da norma provocou forte reação de entidades da sociedade civil, movimentos LGBT+ e organizações médicas. Elas consideram que a resolução representa um retrocesso na garantia de direitos da população trans e ignora recomendações de entidades internacionais de saúde.
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) classificou a resolução como "um ataque direto à vida de pessoas trans", acusando o CFM de violar princípios éticos e comprometer a saúde mental de adolescentes em processo de transição.
“Estamos diante de mais uma ação coordenada que dialoga com a crescente agenda antitrans em nível global, marcada por políticas e discursos que atacam diretamente a existência, a dignidade e os direitos básicos da nossa população”, destaca a Antra em comunicado.
A ONG Minha Criança Trans, que acompanha famílias com filhos trans, alertou para os riscos psicológicos da medida:
"Esses tratamentos são a salvação para muitos jovens. Sem eles, a depressão, a ansiedade e até riscos de suicídio disparam. O CFM está ignorando a ciência e condenando adolescentes a sofrerem em corpos que não representam quem são”, afirma a ONG.
Já o grupo Mães pela Diversidade disse ter recebido a resolução com “indignação e surpresa”.
“Nossas famílias vivenciam cotidianamente os enormes desafios de romper estigmas, preconceitos e discriminações e buscam oferecer a suas crianças, adolescentes e jovens ambientes seguros e todas as oportunidades de vivenciarem as experiências necessárias para seu pleno e saudável desenvolvimento”, disse em comunicado.
* Produção: Camila Mendes