Em 11 de março de 2020, Andréia Pinheiro da Silva deu entrada no Hospital Mãe de Deus, em Porto Alegre, com 41 semanas de gestação. Acompanhada do marido, Rafael Trindade Camargo, ela passou o dia seguinte aguardando a chegada de sua primeira filha. Liz Pinheiro Camargo nasceu às 23h42min, horas depois da Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia de coronavírus — informação sobre a qual os pais ainda não tinham conhecimento e só foram entender a real dimensão após a alta hospitalar.
— Sabíamos o que estava acontecendo pelos jornais. Todo mundo estava com medo, mas ninguém sabia exatamente o que era, então parecia muito distante. Depois do parto, fomos para o quarto e tivemos alta normalmente, sem usar máscara ainda. Recebemos uma visita no hospital e dos meus sogros em casa, no domingo. Na segunda-feira (16 de março), começou a fechar tudo — lembra Andréia, 40 anos.
Com o avanço da disseminação do vírus e a recomendação de isolamento, o momento tão aguardado pelo casal acabou marcado por uma série de adaptações. As mais simples envolveram improvisar um ensaio newborn, que é feito nos primeiros dias de vida do recém-nascido, em casa, e apresentar a filha para amigos e familiares por videochamadas. Já as mais complexas estavam relacionadas às consultas médicas, nas quais a mãe de primeira viagem precisava entrar sozinha com Liz, e ao medo de contaminação durante tarefas básicas do dia a dia, como ir ao mercado e à farmácia.
Assim, nos primeiros meses de vida, a menina basicamente só teve contato com os pais, com a avó materna que mora com eles, em Montenegro, e com a cuidadora e babá que trabalha para o casal. Somente em setembro começaram a levá-la para passear, dentro do carrinho, em praças da cidade, mas ainda com distância das outras pessoas.
— Ficamos muito tempo sem ver ninguém, porque tínhamos muito medo por ela ser bebê. Só saíamos para ir ao médico e tentávamos otimizar as saídas ao máximo, fazendo mais coisas juntas. Era só o Rafa que ia no supermercado e na farmácia, por exemplo. Depois, tomava um banho de álcool em gel. Mas eu não tinha a mínima prática, então tivemos alguns perrengues. Acho que se não tivesse a pandemia essa fase teria sido mais tranquila — relata a mãe.
Para dar conta da situação atípica e conseguir aproveitar o momento que estavam vivendo, o casal optou por não acompanhar tanto as notícias sobre a pandemia e focar na filha. Um dos desafios, no entanto, foi trabalhar em casa com uma criança pequena. Enquanto Rafael segue em home office, Andréia voltou a trabalhar presencialmente ainda em 2020. Ambos concordam que o período de distanciamento os deixou mais individualistas, centrados apenas na família, e comentam que alguns cuidados permaneceram, como evitar ambientes fechados em horários de maior movimento e aglomerações, mesmo ao ar livre.
Em relação à paternidade, Rafael comenta que a experiência com Liz tem sido totalmente diferente daquela que teve com seus outros dois filhos, frutos de um relacionamento anterior. Desta vez, se sente mais comunicativo, embora aponte que a preocupação e os cuidados permaneceram e são maiores.
Ele afirma, por exemplo, que a filha tem acesso ao celular para ver vídeos, mas ressalta que o tempo é bastante controlado. Para evitar que o uso fosse excessivo nos primeiros anos da pandemia, Rafael apostou em diferentes brincadeiras, que mantém até hoje. Além de correr e brincar na pracinha que o pai construiu no pátio, Liz gosta muito de histórias, que Rafael faz questão de contar para incentivar que ela se desenvolva:
— Com um ano e pouquinho, ela já estava falando bem. Acredito que a alta comunicação verbal da Liz se dava porque conversávamos muito e com muita gente por telefone, isso fez com que ela também conversasse com os outros.
Reflexo no comportamento
Em 2021 e em 2022, Liz não teve festa de aniversário. Quando completou um ano, a pior fase da pandemia estava em seu auge e todas as regiões do Rio Grande do Sul entraram em bandeira preta, uma sinalização sobre a baixa disponibilidade de leitos de UTI.
Já no ano seguinte, toda a família teve covid-19 um pouco antes da data e o casal preferiu não arriscar passar pela situação novamente. Assim, até que o distanciamento deixasse de ser uma recomendação, a menina teve pouco contato com outros adultos e crianças — o que fez com que estranhasse a aproximação com pessoas fora do núcleo familiar em um primeiro momento.
— No início, ela era meio bichinho do mato, ficava tímida. Era bem complicado. Ela era bastante egoísta e um pouco possessiva, principalmente comigo, porque era com quem ficava o dia todo. Se vinha outra criança, ela já se agarrava na gente e tinha até um pouco de medo, mas depois se soltava — relata Rafael.
— Quando saíamos para a rua, ela ficava extremamente feliz, desbravava tudo, se sentia livre. Mas, por ter tido pouco contato com crianças, ela não dividia as coisas. Agora, ela já divide e estabelece contato muito rápido, já recuperou esse tempo. Ela pediu para ir para a escola esse ano, quer ter amigos e colegas, então acho que está melhor, mas ela realmente era mais quietinha antes — acrescenta Andréia.
Psicóloga especialista em estimulação precoce, Laura Corso comenta que tem atendido muitas crianças que nasceram ou tinham até dois anos durante a fase mais crítica da pandemia. Conforme ela, a maior parte apresenta algum tipo de atraso, seja emocional, em razão da falta de desenvolvimento de habilidades sociais, motor, por não ter uma forte experiência de brincar e circular livremente, ou cognitivo, devido à falta de estímulo ao aprendizado de coisas novas.
A especialista, que atua na clínica Palavreando, aponta também que o contato com as telas acabou sendo ainda mais precoce em algumas situações, já que os pais precisavam trabalhar e lidar com as tarefas domésticas:
— Essas experiências eletrônicas muito cedo acabam sendo prejudiciais. Não são tão ricas quanto brincar com objetos, construir coisas e desenvolver a imaginação e a tridimensionalidade. Porque TV, tablets e celulares são bidimensionais, a criança só fica assistindo passivamente.
Já no lado emocional, podem ocorrer diferentes situações, algumas semelhantes àquelas citadas por Rafael e Andréia. Laura afirma que tem visto muitas crianças apresentando vergonha e medo excessivo, sem querer interagir com adultos ou pessoas da mesma faixa etária que não sejam de suas famílias, e sem saber brincar de forma coletiva.
Quando saíamos para a rua, ela ficava extremamente feliz, desbravava tudo, se sentia livre. Mas, por ter tido pouco contato com crianças, ela não dividia as coisas. Agora, ela já divide e estabelece contato muito rápido, já recuperou esse tempo.
ANDRÉIA PINHEIRO DA SILVA
Mãe de Liz Pinheiro, nascida no dia que foi declarada a pandemia
— Aí acabam sendo até um pouco egoístas, porque não sabem como é uma brincadeira, como se divide, que tem o tempo de cada um. Isso porque ainda não sabem como socializar. Já a parte do medo, vem do fato de que, na pior fase, ensinamos que era perigoso se aproximar dos outros, porque podiam transmitir o vírus. Agora, estamos dizendo “pode ir”, mas precisamos dar a elas um tempo para que entendam que a informação mudou — ressalta.
Para a especialista, crianças de todas as faixas etárias foram afetadas de alguma forma, já que foram privadas de experiências de diferentes fases da vida. As que nasceram ou eram muito pequenas no início da pandemia, aponta, não tiveram tempo nem de assimilar todas as possibilidades fora de casa. Agora, a retomada é difícil porque elas precisam construir entendimentos que deveriam ter assimilado anos atrás, portanto, é necessário um período de adaptação ao novo.
Sinais de alerta
Comportamento muito recluso, dificuldade de interação com outras crianças e sinais de medo excessivo devem servir de alerta para os pais do ponto de vista emocional. Contudo, a neuropediatra Renata Kieling destaca um outro aspecto: o atraso no diagnóstico de problemas de saúde devido à interpretação equivocada de que determinada dificuldade que a criança apresenta se trata apenas de um reflexo do período de distanciamento.
— Quase nunca tem a ver com isso. É importante entender que o cérebro de uma criança, especialmente nesta faixa etária de até três anos, precisa de muito pouco para se desenvolver da forma correta. O tipo de estímulo que um bebê precisa tem muito pouco a ver com as privações que as famílias tiveram durante a pandemia. Teria que acontecer algo muito ruim para ter algum tipo de repercussão no ponto de vista neurobiológico, que impacte no atraso da fala, por exemplo — explica.
Renata acrescenta que uma criança pequena precisa, basicamente, de um adulto com quem crie vínculo, que preste os cuidados necessários, atendendo e amparando quando preciso. Assim, a falta de experiências como festas de aniversário e passeios não transformaria alguém em uma pessoa acanhada e incapaz de se relacionar com outras para sempre.
A parte do medo, vem do fato de que, na pior fase, ensinamos que era perigoso se aproximar dos outros, porque podiam transmitir o vírus. Agora, estamos dizendo “pode ir”, mas precisamos dar a elas um tempo para que entendam que a informação mudou
LAURA CORSO
Psicóloga especialista em estimulação precoce, Laura Corso
O que pode estar indiretamente relacionado, no entanto, é a forma como algumas famílias passaram pelo período de isolamento. A neuropediatra aponta que algumas pessoas enfrentaram muito sofrimento, seja por luto, ansiedade excessiva ou abuso de substâncias, e que isso pode ter impactado nos cuidados que pais e mães eram capazes de oferecer aos seus filhos. Nesses casos específicos, o desenvolvimento cognitivo pode ter sido afetado, gerando dificuldades.
material elaborado o pelo Centers of Disease Control and Prevention (CDC) e distribuído pela Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNi) em 2019 elenca sinais de atenção para diferentes faixas etárias e indica que os pais procurem atendimento especializado caso crianças de três anos apresentem as seguintes características:
- Cai muito ou tem dificuldade com degraus
- Baba ou apresenta fala não clara
- Não consegue manusear brinquedos simples (como painéis furados, quebra-cabeças simples, maçaneta de virar)
- Não usa frases para se comunicar
- Não entende instruções simples
- Não brinca de faz de conta ou de mentirinha
- Não quer brincar com outras crianças ou com brinquedos
- Não faz contato com os olhos
- Perde habilidades que já teve