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Médicos brasileiros se dividem sobre a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentada na terça-feira (28) segundo a qual as doses de reforço contra a covid-19 não devem mais ser administradas à população que não esteja nos grupos de alto risco. Enquanto alguns avaliam que a vacinação em massa no Brasil não é necessária no momento, outros acreditam que especificidades do país devem ser levadas em consideração.
No comunicado, a OMS justifica a recomendação "dado o alto nível de imunização alcançado pelas populações em vários países", mas afirma que as autoridades locais devem analisar contextos específicos.
— É um reflexo de que grande parte da população já está vacinada, foi infectada com a covid-19, ou as duas coisas ao mesmo tempo — afirmou Hanna Nohynek, presidente do Grupo Assessor Estratégico de Especialistas em Vacinas (SAGE) da OMS.
Pela primeira vez, o grupo dividiu a população em três grupos de risco (alto, médio e baixo), orientação definida após reuniões entre os dias 20 e 23 março. Veja abaixo mais detalhes sobre os três grupos.
Como os médicos avaliam a decisão da OMS?
Representante do Brasil no comitê da OMS, o pediatra e infectologista Renato Kfouri destaca que a nova recomendação vale para as doses de reforços.
— No caso das pessoas que não estão com a vacina em dia, não tomaram as doses recomendadas, isso não vale. A questão é reforço, levando em consideração que todos precisam ter tomado três doses no esquema básico — afirmou ele.
Segundo Kfouri, a discussão no grupo de especialistas foi bastante intensa porque levava em conta muitas realidades diferentes.
— Estabelecer uma recomendação única para os países não é uma tarefa fácil, então, acho que o que foi decidido é o que já imaginávamos e defendemos. Não há evidências suficientes hoje para reforçar a vacina na população inteira (no mundo todo). A doença está ficando com caráter endêmico. A pandemia está acabando e vamos migrar para um modelo de vacinação, como vacinamos as pessoas contra a gripe, entendendo quais são os grupos mais vulneráveis e fazendo recomendações em saúde pública, focadas no público que tem maior risco de mortalidade — disse ainda Kfouri, também presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Lauro Ferreira Pinto Neto, infectologista da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e professor da Escola de Medicina da Santa Casa de Vitória (ES), concorda com a decisão anunciada pela OMS, que leva em conta, segundo ele, a realidade atual.
— O painel é dinâmico e mudanças podem ocorrer — afirma o especialista.
— É difícil julgar decisões na Medicina. Passamos por um período extremamente difícil durante a pandemia da covid-19. E o mérito da vacinação no controle da doença foi indiscutível. É importante lembrar que todos estamos sujeitos à infecção. E a melhor arma é sempre a prevenção — defende Giovanna Marssola Nascimento, infectologista do Hospital Leforte da unidade Morumbi, em São Paulo.
A realidade do Brasil exige um cuidado diferente?
Em sua argumentação, Pinto Neto destaca a mudança do perfil das pessoas que morrem de covid atualmente.
— São idosos e pessoas com comorbidades e imunossuprimidos. Não tem ocorrido mortes significativas em jovens, exceto imunossuprimidos e aqueles que não estão vacinados. Desta forma, acredito que não faz sentido manter a vacinação em massa. Somente nos grupos de risco — disse.
— A gente não vacina (nas campanhas do Sistema Único de Saúde) jovens e adultos saudáveis contra a gripe no Brasil, por exemplo, embora eles possam se vacinar em clínicas privadas. É bom se imunizar, mas quem morre e fica hospitalizado é quem faz parte do grupo de risco. Com covid-19, o cenário será semelhante — acrescenta Kfouri.
Já Giovanna, infectologista do Hospital Leforte da unidade Morumbi, lembra que o próprio consenso dos especialistas da OMS orientou que os países embasassem suas decisões em fatores contextuais (carga da doença, custo-efetividade e outras prioridades programáticas ou de saúde e custos de oportunidade).
— O cenário brasileiro é de baixa cobertura vacinal de várias doenças por falta de políticas de incentivo nos últimos anos. Estamos em um momento de resgatar a importância da cobertura vacinal no país. Desencorajar este processo seria, a meu ver, um retrocesso — afirma a especialista.
Cláudia França Cavalcante Valente, coordenadora do Departamento Científico de Imunização da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai), afirma que as reavaliações acontecem em todos os programas de imunizações para todas as doenças.
Com a covid-19 em novo momento epidemiológico, é indicada uma reavaliação sobre a aplicação da vacina de reforço, mas no caso do Brasil, segundo ela, devem ser seguidas as indicações do Programa Nacional de Imunizações (PNI).
— O grupo de covid-19 da OMS fez a reavaliação, segundo o momento epidemiológico atual da doença e a cobertura vacinal no mundo todo. No entanto, o Ministério da Saúde, por meio do PNI, faz as indicações, segundo a realidade no Brasil. A indicação da vacina bivalente, por exemplo, está para grupos de risco atualmente: maiores de 60 anos, profissionais de saúde, gestantes e imunossuprimidos (pacientes em tratamento de câncer e em uso de drogas imunossupressoras) — disse ela.
Pessoas do grupo de alto risco
Conforme a recomendação da OMS, a necessidade de novas doses de reforço permanece apenas para o grupo considerado de alto risco, que inclui: idosos, imunossuprimidos, pessoas com comorbidades, gestantes e profissionais de saúde. Também fazem parte do grupo, de acordo com Kfouri: bebês com mais de 6 meses que tenham algumas das condições de saúde citadas anteriormente.
A recomendação é que a dose de reforço seja aplicada a cada 6 ou 12 meses, dependendo de fatores como idade e condições de saúde, além das definições de cada país. Os especialistas da OMS recomendam ainda uma dose de reforço contra a covid-19 seis meses ou mais após a anterior para mulheres grávidas.
— Esse nível de recomendação (alto, médio e baixo) é o que fazemos no caso da imunização para gripe. Lembrando que a imunização será feita sempre com o olhar nas características de cada país. Uma coisa é ter covid-19 em uma criança no Brasil e outro cenário é na Inglaterra, por exemplo. O risco de morte no Brasil pela doença é 15 vezes maior que nos Estados Unidos ou no Reino Unido — afirmou o representante do Brasil no SAGE, da OMS.
— Isso se deve a questão de acesso à saúde, tratamento e nutrição. Então, a decisão passa por uma questão de disponibilidade de vacinas de cada país e também por carga da doença em cada localidade. Tem que vacinar grupos prioritários e os menos prioritários, vai depender da carga da doença avaliada individualmente.
Pessoas do grupo de médio risco
Para pessoas com risco médio de covid-19 (adultos com menos de 60 anos e crianças ou adolescentes com determinados problemas de saúde que não os coloquem em risco em relação à doença), o SAGE recomenda apenas uma primeira dose completa da vacina mais um reforço após o período necessário (algo que em muitos países já foi concluído em 2022). Desta forma, de acordo com a OMS, apenas o esquema inicial com duas doses e a primeira dose de reforço são suficientes.
Pessoas do grupo de baixo risco
Em relação ao grupo de baixo risco (crianças a partir de 6 meses e adolescentes), o SAGE reconhece os benefícios que as vacinas e doses de reforço podem ter na sua prevenção, embora recomende reconsiderar sua imunização. Ou seja, cada país deve decidir como seguirá com o calendário.
— Cada país deve considerar seu contexto específico ao decidir se deve continuar vacinando grupos de baixo risco, como crianças e adolescentes saudáveis, sem comprometer outras imunizações cruciais — disse Hanna Nohynek.
Como fica a discussão em relação à vacina bivalente?
Conforme Pinto Neto, a medida deve valer também para a vacina bivalente.
— Um reforço para as pessoas que fazem parte dos grupos de risco, o que inclui os idosos — afirma o especialista.