Médico endocrinologista, Marcos Rovinski é o presidente do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) para o triênio 2022-2024. Formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), legista aposentado, o porto-alegrense de 70 anos já integrava a administração anterior da entidade, primeiro como secretário e depois como vice-presidente.
Nesta entrevista, ele fala da continuidade do trabalho, do impacto da pandemia para a categoria, dos principais problemas enfrentados atualmente pelos profissionais e dos projetos para a gestão.
A pandemia foi o maior desafio da categoria. Que avaliação o senhor faz do período?
O Simers foi uma das primeiras entidades que se preocupou com a situação. Distribuímos álcool gel para parceiros, colaboradores, médicos na linha de frente. Mandamos confeccionar máscaras a partir de parcerias. Fizemos uma ação pioneira, um drive-thru para vacinação de médicos. Temos muito orgulho de ter feito as quatro doses de vacina para os médicos que assim desejassem. Nossa ação, ao longo de toda a pandemia, foi no sentido de garantir a autonomia do profissional médico, respeitando a autonomia do paciente, no que se refere ao tratamento. Nossa posição oficial foi a mesma do Conselho Federal de Medicina (CFM), de defesa da autonomia do ato médico. Não defendemos nem atacamos o tratamento precoce. Garantimos a autonomia do profissional e do paciente. Agimos bastante no sentido de assegurar também, junto às entidades de saúde, à parte política, em Brasília, o apoio ao aumento do número de leitos e do encaminhamento de recursos. E aconteceu. Foram enviados recursos não só ao Rio Grande do Sul como a todos os Estados. O Rio Grande do Sul teve um aumento importante no número de leitos hospitalares, o que garantiu o atendimento, apesar de uma doença que não conhecíamos. Não houve, praticamente, falta de leitos de UTI. Ressaltamos o trabalho abnegado e incansável dos intensivistas, que ultrapassaram seus limites no atendimento à população. Médicos e demais servidores da saúde não pouparam esforços. O sindicato esteve ao lado dos médicos o tempo inteiro, lutando pelo direito de receber insalubridade, receber os salários, ter o número suficiente de profissionais. Estivemos ao lado dos profissionais e das instituições de atendimento à saúde.
No momento mais crítico, em março de 2021, médicos tiveram de fazer escolhas, decidir quais pacientes salvar.
Naquele momento, foi o limite. Houve, em alguns locais, realmente, a necessidade de ter que fazer opções. Não foi regra. Foram casos excepcionais, em momentos excepcionais. O Rio Grande do Sul conseguiu oferecer, mesmo no momento mais crítico, um bom atendimento à população.
O senhor falou no tratamento precoce, tema exaustivamente discutido. Surgiram, cedo, evidências de que não era eficaz contra a infecção pelo coronavírus ou a covid-19. Boa parte da categoria demandou um posicionamento das entidades representativas, principalmente do CFM, com o qual vocês estão alinhados. Não faltou uma posição mais objetiva a respeito disso, em vez de não condenar nem defender?
A categoria médica se dividiu. Somos um sindicato que defende os médicos, tanto os que, por sua experiência, acreditaram que poderiam tratar quanto aqueles que, por sua experiência, acreditavam que não funcionava. A questão científica tinha que ter sido discutida nos locais mais adequados, na academia, em discussões de casos, em congressos, em simpósios de especialidades. Na verdade, o que tivemos foi uma guerra ideológica que não ajudou em nada a população. Nós não entramos nessa guerra. Acreditamos na autonomia do médico e na autonomia do paciente no tratamento. O que houve foi uma guerra ideológica pela mídia, pelas redes sociais, uns defendendo, outros atacando. E o sindicato defendeu o ato médico, a experiência do profissional no atendimento junto da autonomia do paciente.
O suposto tratamento precoce vem sendo estudado pela academia, por cientistas. Não é só questão de debate ideológico, já há muitas evidências.
Temos muito pouco tempo de doença, muito pouco tempo para fazer trabalhos de longo prazo. Não vamos nos posicionar nessa questão científica porque temos que deixar o tempo passar. Estamos no meio da bolha, não enxergamos a bolha. A ciência tem que ser discutida com tempo, trabalhos mais longos. No início, criticava-se o uso do corticoide no tratamento da covid. Depois se viu que o corticoide era importante na segunda fase da covid. Em alguns países, o uso de algumas medicações tem mostrado eficácia, alguns trabalhos mostram. Então acho que temos que avaliar com o tempo. Não abraçamos nenhuma das causas. O sindicato não entra na questão científica. Oferecemos serviço, oferecemos as vacinas. Não há nenhuma posição crítica nem a favor, nem contra. Os médicos com interesse em se vacinar receberam as vacinas. Não somos negacionistas. Nosso objetivo é defender o médico. Defendemos o respeito ao código de ética e ao ato médico.
Quais as principais demandas do setor no momento?
Com essa guerra ideológica que se travou entre grupos a favor ou contra, na mídia, o que menos se fez foi valorizar o médico que estava na ponta. O médico foi muito aplaudido em tudo que é sacada do mundo, mas na hora, por exemplo, de valorizar o profissional do ponto de vista de remuneração... Aqui em Porto Alegre continuamos com a segunda pior média salarial de nível superior. Ninguém pensou em melhorar o trabalho dos médicos, que foram incansáveis. Muitos pereceram, adoeceram, a categoria ficou em burnout em todo o mundo, não só aqui. Mas não houve nenhuma valorização. Criamos uma regionalização, uma estrutura com diretores no Interior e na Região Metropolitana. Temos problemas gravíssimos de remuneração do profissional em Uruguaiana, Livramento. Tem médicos sem receber, pedindo demissão. Também temos (problemas) em Rio Grande. Estamos encabeçando uma frente em defesa da Santa Casa de Rio Grande, onde também os médicos estão sem receber. No Estado em geral, tem a questão grave do IPE Saúde. Desde 2011, não tem reajuste na tabela. Um médico, hoje, que vai ao hospital atender um paciente internado, por uma pneumonia, por exemplo, recebe R$ 25,59. Com o Imposto de Renda, vai a R$ 18. Isso é menos do que ele paga para deixar o carro no estacionamento. A saúde do funcionário público estadual vale, para o Estado, R$ 18 por dia. Outra coisa é a pediatria, uma especialidade muito desvalorizada ao longo do tempo. Com a pandemia, que praticamente não atingiu crianças, ou muito pouco, o pediatra ficou sem trabalho. Com o fim da pandemia, o que aconteceu? As crianças voltaram a socializar, e doenças próprias da infância, como rubéola, sarampo, voltaram a acontecer. Foi deixado um serviço materno-infantil como o da PUCRS, por exemplo, e o serviço que era para ser incrementado, o do Hospital Presidente Vargas, que fez o convênio com a PUCRS, não foi incrementado porque aconteceu a pandemia. Resultado é que hoje todas as emergências pediátricas estão lotadas por falta de profissional e estrutura. Então criamos uma campanha pelas emergências pediátricas, alertando os gestores. Tivemos a sensibilidade de alguns gestores, como da Secretaria da Saúde de Porto alegre, que começou a incrementar o número de atendimentos pediátricos. Temos problemas gravíssimos em Canoas, que é o pior sistema de saúde do Estado. A ideia de privatização dos atendimentos de saúde, que foi exemplar em Canoas, onde todo o atendimento praticamente foi terceirizado, não deu certo novamente. Já tivemos o problema do Gamp (Grupo de Apoio à Medicina Preventiva e à Saúde), que ficou devendo horrores, e agora os médicos estão recebendo o FGTS devido há cinco anos. O sindicato está muito ativo em Canoas. Todo dia tem uma demanda lá. E agora o Hospital Centenário, em São Leopoldo, outro problema crônico de gestão, falta de recurso, desrespeito ao profissional médico. Lá há problema na pediatria, no atendimento clínico. Vamos acionar, novamente, Ministério Público e Cremers para que tomem uma atitude em relação à gestão, que é municipal.
O Hospital Universitário de Canoas tem sido um grande foco de problemas.
O gestor vai ter que colocar mais médicos e insumos. Teve um momento em que não tinha gaze, paracetamol. Um pediatra teve que atravessar a rua e comprar na farmácia, do seu bolso, para dar para o paciente. Precarização total. Logo em seguida, o próprio prefeito em exercício (Nedy de Vargas Marques) esteve aqui no sindicato dizendo que estava adquirindo R$ 1,5 milhão em insumos. Ou seja, um assumir de culpa pela má gestão. O Hospital de Pronto Socorro de Canoas tem problemas com cirurgia plástica. A mesma coisa com a gestão do Hospital Nossa Senhora das Graças... Enfim, Canoas tem problemas gravíssimos, que parecem ser tratados de maneira amadora, e não profissional. O sindicato está em cima disso. Nosso objetivo é, evidentemente, defender o médico, mas estamos defendendo a saúde da população. O médico tem que ter boas condições de trabalho para que possa atender adequadamente a população.
As emergências para adultos também têm enfrentado superlotação com muita frequência. De que forma isso afeta o trabalho dos profissionais desse e de outros setores?
Com o burnout de que a população médica está sendo vítima. Estamos falando aqui do Sistema Único de Saúde (SUS). Os gestores tratam como se fossem prestadores de serviço que não lidam com pessoas. Veem números, fazem corte de recursos, sem se dar conta ou valorizar o que acontece na ponta. Temos um SUS subfinanciado, é fundamental rediscutir a gestão do SUS e seu financiamento. Ao longo do tempo, foram agregados recursos cada vez mais caros no atendimento médico, e isso não se reflete no aumento do financiamento. Todos os hospitais filantrópicos do Estado, praticamente, estão quebrados. Todos os que atendem 100% SUS estão quebrados. É por falta de financiamento. Não é possível que se mantenha esse tipo de financiamento que, sabidamente, está levando à quebradeira de hospitais e à sub-remuneração dos profissionais. Os profissionais das emergências estão em número insuficiente. Temos que aumentar o número de emergências também. Não podemos criticar as emergências que estão funcionando. Vamos criticar as que pararam. Por exemplo, o Materno-Infantil da PUCRS. Aí ninguém critica porque não tem mais o serviço, mas critica o do Conceição que ficou superlotado exatamente porque a PUCRS fechou. Tivemos a abertura de uma emergência pediátrica no Hospital Vila Nova. Isso temos que saudar.
O senhor destacaria outros projetos para o triênio?
Estamos ampliando nossa atividade no Interior, com incursões sistemáticas e periódicas para ouvir as demandas. Queremos ampliar serviços. Estamos criando um plano de previdência para médicos. Muitos são autônomos ou não criam condições para sua aposentadoria, acabam não conseguindo parar de trabalhar para continuar mantendo sua qualidade de vida e financiamento. Estamos ampliando o que já temos, como contabilidade e jurídico. Teremos um fórum, dia 18 de agosto, aqui em Porto Alegre, quando discutiremos várias coisas do interesse médico, inclusive as atuais alterações nas contratações de trabalho. Queremos criar condições de mais estabilidade. Hoje muitos são contratados como pessoa jurídica, ficam doentes e não têm direito a nada. Estamos tentando fazer um projeto de lei e vamos oferecê-lo aos nossos congressistas para que aumentem a segurança do médico contratado como pessoa jurídica. E esse fórum vai terminar com um debate entre os candidatos ao governo do Estado.