A relação entre a saúde mental e a alimentação já é conhecida há muito tempo, tanto que a popular frase “você é o que você come”, atribuída ao pensador Jean Anthelme Brillat-Savarin, data da época da Revolução Francesa. Mas foi nos últimos cinco anos que a psiquiatria nutricional ganhou terreno, produzindo estudos que mostram que uma alimentação pouco saudável, com base em alimentos ultraprocessados, excesso de açúcar, pouca água e com ritmo irregular, pode causar ou agravar transtornos como a depressão e a ansiedade. Por outro lado, uma alimentação mais focada em alimentos naturais, verduras, frutas, carnes, cereais, grãos e gorduras boas como ômega3, encontradas nos peixes, tem demonstrado capacidade de melhorar esses males.
Conforme explica a cientista gaúcha Elisa Brietzke, professora titular do departamento de psiquiatria da Queen’s University no Canadá e pesquisadora em psiquiatria nutricional, o estômago e o intestino humanos têm uma série de bactérias boas, que ajudam a quebrar a comida, digeri-la e a fazer com que o organismo humano absorva melhor os nutrientes. Há vários nutrientes, provenientes dos alimentos, importantes para a fabricação de neurotransmissores, que por sua vez são o mecanismo pelo qual um neurônio se comunica com o outro. Um desequilíbrio nessa relação pode impactar as emoções do indivíduo.
– Quando comemos comidas ultraprocessadas, que geralmente são as que vêm dentro de um saco, de uma lata ou de uma caixa, mudamos a composição da nossa microbiota e podemos ter piora da saúde mental pois ficamos sem os nutrientes necessários para fabricar os neurotransmissores. A serotonina, por exemplo, é um neurotransmissor que propicia a comunicação da área do cérebro envolvida no humor – diz a psiquiatra.
Uma série de cientistas da psiquiatria, neurologia e nutrição têm se dedicado a entender o funcionamento do chamado eixo intestino-cérebro e o impacto que essa relação tem sobre as nossas emoções. O pontapé inicial foi dado em 2017, data da fundação da Associação Internacional de Psiquiatria Nutricional (ISNPR), cuja presidente é a australiana Felice Jacka. Ela é considerada pioneira no estudo da relação entre alimentação e humor e, ao lado de outros 13 pesquisadores, conduziu o ensaio clínico Smiles, o primeiro a testar a melhoria na alimentação como uma estratégia de tratamento da depressão. Participaram da pesquisa 67 indivíduos diagnosticados com depressão moderada ou grave, que foram divididos em dois grupos: o primeiro contou com a orientação de nutricionistas e passou a seguir uma dieta semelhante à mediterrânea, enquanto que o segundo grupo continuou sua alimentação habitual, participando de encontros com a equipe de pesquisa mas sem receber orientações nutricionais.
Ao longo das 12 semanas em que foram observados, os participantes do primeiro grupo mudaram sua forma de comer, priorizando frutas, legumes, nozes, feijões, cereais, frutos do mar e um pouco de carne vermelha, em detrimento de alimentos ultraprocessados, como embutidos, fast food, massas e doces. Ao fim do estudo, os cientistas concluíram que um terço daqueles que seguiram a dieta indicada apresentaram melhora significativa, não podendo mais sequer ser classificados como deprimidos. No grupo controle, a melhora foi menor, cerca de 8%.
– A gente tem evidências de que a dieta mediterrânea pode ter um efeito protetor contra a depressão, sendo baseada em peixes, vegetais, verduras, azeite de oliva, frutas, predominantemente sem alimentos processados. O que não quer dizer que somente esta é boa, pois há uma série de outras dietas que ainda precisam ser estudadas. Fato é que o estudo da Felice Jacka mostrou efeitos benéficos da mediterrânea à saúde mental – afirma Elisa.
Uma terapia complementar
O médico neurologista Pedro Schestatsky explica que a psiquiatria nutricional não é a solução para todos os distúrbios da mente e não deve ser vista como uma excludente da psiquiatria tradicional, e sim como complementar. Para casos em que os pacientes têm indicação para fazer uso de medicações, a boa nutrição pode contribuir para que o indivíduo a utilize em menor dose.
– Já observei vários pacientes que deixaram de usar fármacos ou reduziram a dose pois a alimentação e o estilo de vida assumiram a função dos medicamentos. A psiquiatria nutricional não é a solução para todos os males, mas é importante. Você pode ter remédios, mas se não tiver um cérebro bem mimado, bem tratado, fica difícil até de o medicamento chegar lá. É como ter um carro bom, mas não ter gasolina – compara o neurologista.
Cinco dicas dos especialistas
Beber água
A água é necessária para todos os processos fisiológicos do corpo humano, inclusive para manter o cérebro funcionando. O ideal é preferir sempre água a refrigerantes ou bebidas com sabor. Beber pelo menos 1,5 litro por dia ajuda a melhorar os processos enzimáticos digestivos do organismo.
Consumir alimentos naturais
– A comida boa é a comida que nossos pais e avós comiam, in natura – afirma Elisa Brietzke.
Tendem a melhorar a qualidade de vida e combater a ansiedade e a depressão alimentos naturais (não processados industrialmente ou produzidos em laboratório), como cereais, vegetais de todas as cores – mas especialmente os verde escuros –, frutas, carnes, azeites e alimentos fermentados. Também é recomendado que a alimentação ocorra em pequenas porções e que se faça um intervalo de pelo menos três horas entre o jantar e a hora de dormir.
– Não comer nesse intervalo é um aperitivo para o que seria o jejum intermitente, período de 16 horas sem comer que também beneficia o cérebro. Esse “minijejum” faz com que o corpo produza corpos cetônicos, verdadeiros bálsamos para o cérebro. São como uma reserva de energia que, no momento em que precisamos dela e vamos buscá-la, esse processo faz com que os neurônios se revitalizem – diz Pedro Schestatsky.
Moderar nas junk foods
De acordo com Elisa, os estudos da psiquiatria nutricional demonstram que a dieta ocidental, de consumo excessivo de fast food, refrigerante, batata frita e embutidos, é ruim para a saúde mental: ela tem potencial de causar depressão em quem não a tem e, em quem já tem, pode ser um fator agravante. Isso porque é uma dieta que não fornece os nutrientes necessários para a criação dos neurotransmissores que fazem o cérebro funcionar bem. São dietas geralmente com excesso de açúcar e de gorduras ruins, que tendem a causar aumento de peso.
– Dependendo da vulnerabilidade genética do sujeito, alguns alimentos inflamatórios como junk foods e fast foods podem sim ser perpetuadores ou gatilho de transtornos do humor do tipo depressivo e ansioso. Está inclusive relacionado ao suicídio entre jovens o consumo excessivo de líquidos açucarados – afirma Schestatsky.
Comidas hiperpalatáveis, fáceis de comer, como sobremesas, fast food e ultraprocessados, podem fazer parte da dieta, mas de forma pontual. É importante que o alimento sirva para conectar o sujeito com sua família, amigos e cultura. A recomendação de Elisa é de que esses alimentos sejam encarados como um elemento desta dinâmica social, e não como uma ferramenta para alívio de frustrações, usada para se anestesiar, o que caracterizaria uma relação disfuncional.
Consumir probióticos
Os alimentos probióticos – que contém bactérias vivas benéficas à flora intestinal – devem integrar uma dieta que visa beneficiar o cérebro, já que facilitam a produção de neurotransmissores, além de hormônios e substâncias anti-inflamatórias que repercutem no corpo inteiro. Um exemplo são os alimentos fermentados, processo que pode ser feito em casa com qualquer vegetal, como rabanete, gengibre ou repolho. Shestatsky diz:
– O principal é o kimchi (feito a partir da fermentação de hortaliças como a acelga), mas há também o chucrute, o missô (feito a partir da soja). É basicamente pegar um vegetal e colocar em um pote bem vedado, com sal e água, para fermentar.
Manter um ritmo alimentar
É recomendado fazer as refeições no mesmo horário, todos os dias. De acordo com Elisa, manter essa regularidade é especialmente importante para a regularidade do sono, que por sua vez é importante para a recuperação do cérebro e a proteção contra doenças mentais:
–Temos um ritmo circadiano (período de cerca de 24 horas sobre o qual o ciclo biológico de quase todos os seres vivos se baseia) para a produção de hormônios, de neurotransmissores, para o metabolismo. Nosso corpo precisa desse ritmo. Quando a pessoa come refeições pesadas tarde da noite, por exemplo, pode demorar mais para dormir ou ficar com o sono entrecortado. E se isso ocorrer cronicamente, é como se o indivíduo estivesse de jet lag. É ruim para a saúde mental, tende a piorar a depressão.
Efeitos da pandemia
A reclusão imposta pela pandemia de covid-19 beneficiou uma parcela da população brasileira, que pôde se conectar com a cozinha, aprender receitas e experimentar uma alimentação mais rica. No entanto, o impacto foi negativo principalmente entre as populações mais pobres, conforme explica Elisa, que viram seu nível sócio-econômico decair e passaram a comer pior, fazendo com que aumentasse o consumo de enlatados, embutidos e congelados, em detrimento de alimentos frescos.
– Quando veio a pandemia, houve um aumento brutal de problemas de saúde mental a população. Hoje temos dados mostrando que metade da população brasileira já atinge níveis de depressão e ansiedade compatíveis com o diagnóstico de transtorno mental, tá todo mundo muito mal. Estamos começando a ver que parte do impacto da pandemia pode ser devido à problemas de alimentação e, dessa forma, talvez se a gente concertar a alimentação a gente consiga diminuir o impacto da pandemia também – afirma a pesquisadora gaúcha no Canadá.