Um estudo realizado pelo comitê científico da Coalizão COVID Brasil, coordenado pelos principais hospitais privados do país, apontou que a hidroxicloroquina, associada ou não ao antibiótico azitromicina, não tem eficácia no tratamento de pacientes internados com quadros leves e moderados de covid-19. Os dados foram divulgados na quinta-feira (23).
O Coalizão utiliza como metodologia o ensaio clínico randomizado, considerado o padrão ouro da ciência para avaliação de novos tratamentos.
Membro do comitê, o médico intensivista do Hospital Moinhos de Vento Regis Goulart Rosa detalhou o estudo em entrevista ao Gaúcha Atualidade desta sexta-feira (24) e ainda falou sobre a importância de aguardar estudos conclusivos sobre o uso de ivermectina, um antiparasitário utilizado para o combate a vermes, piolhos e sarna que tem sido incluído em compras de alguns prefeitos do RS. Confira a entrevista.
Resultado da pesquisa do Comitê Científico da Coalizão COVID Brasil mostrou que hidroxicloroquina não promoveu melhoria?
Isso. Foi realizada uma pesquisa dentro dessa aliança de instituições, de múltiplo respeito. O primeiro dos estudos, chamado Coalizão 1, foi publicado no New England Journal of Medicine , que é o mais rigoroso com relação a metas. O estudo avaliou pacientes com covid que necessitam de hospitalização, mas que não estavam em estado grave. Alguns, 5%, estavam na UTI, os demais, na enfermaria. Não eram graves porque não precisam de oxigênio ou uma dose considerada moderada. Não estavam em insuficiência respiratória. Nessa população de hospitalizados, a pesquisa avaliou em torno de 665 pacientes, 3 grupos:
Para um, tratamento padrão, convencional, que damos para quem apresenta infecções respiratórias virais. Para os outros dois grupos, foi oferecido: hidroxicloroquina por sete dias, para um, e hidroxicloroquina e azitromicina por mais sete dias para o outro grupo.
O estudo mostrou que o status clínico após 15 dias não foi modificado pela hidroxicloroquina (grupo 2) ou hidroxicloroquina e azitromicina (grupo 3). Ela não modificou a evolução clínica desses pacientes, esse é o resultado principal do estudo. A pesquisa também avaliou segurança. Tanto a hidroxicloroquina (sozinha) quanto em conjunto com azitromicina se associou com alterações extras, que representa risco aumentado para arritmias cardíacas.
Essas alterações era de quem já tinha problema ou não?
É uma alteração. Não é uma arritmia propriamente dita, mas é uma alteração que predispõe ao risco aumentado de arritmia ou morte súbita. Nenhum dos pacientes tinham fator de risco para ter essa alteração. Na entrada do estudo, quem tinha esse risco era excluído. Então, estou falando de pacientes que não tinham fator de risco. Era até esperado, um desfecho que foi medido. Outros estudos já associavam ao risco aumentado de arritmia através desse mecanismo de intervalo aumentado.
O que muda no protocolo dos hospitais a partir do resultado?
Eu falo em nome do Comitê Científico da Coalizão COVID Brasil e minha opinião é de pesquisa. Quando se define protocolo em nível municipal e estadual, isso tem que levar em consideração diversos estudos. O que posso comentar hoje é em relação aos resultados da metodologia da pesquisa. Responde uma pergunta a pesquisa: para esses pacientes hospitalizados, nem a hidroxicloroquina (sozinha) ou com associação à azitromicina trouxe benefícios. (...) O estudo também avaliou desfecho de mortalidade hospitalar e não encontrou nenhum efeito.
Desses 600 e pouco, em cada um dos grupos, quantos morreram?
Esses pacientes, 665, após o dia 15 de tratamento, mais de 60% estavam em casa e sem nenhuma limitação, já tinham retornado. A taxa de mortalidade do estudo para essa população é entre 2% e 3%, não houve diferença entre os grupos de tratamento com relação a mortalidade. Não teve diferença.
Essa pesquisa sai no momento em que cresce número de prefeituras comprando lotes de hidroxicloroquina. O que o senhor diz?
Primeiro, o tratamento ambulatorial, tudo que estou falando com relação ao estudo, remete a pacientes hospitalizados. Temos carência de evidências científicas, vemos junto com outros estudos, porque existem dúvidas ao setor do tratamento. Pacientes que não estão hospitalizados ainda se está estudando (o uso de hidroxicloroquina). O próprio Coalizão tem estudos que avaliam o efeito na hidroxicloroquina para pacientes que não necessitam de internação. Então esse estudo está em andamento, tem 500 pacientes incluídos e tem um comitê interno. Por enquanto, a recomendação é continuar o estudo. Não temos evidência robusta sobre esses pacientes.
O que senhor pode falar pra quem não acredita nos resultados?
A ciência, na prática baseada em evidência, já é comprovadamente o melhor tratamento que podemos dar aos nossos pacientes. A prática baseada em evidência evita que os pacientes sejam tratados com medicamentos danosos e otimizam tratamentos que podem trazer benefícios. (...) A ciência, os resultados, tem que ser o norte não só no momento de pandemia, mas também no momento geral para qualquer novo medicamento ou doença. Isso é recomendado por todas as instituições ao redor do mundo.
Chegam mensagens dizendo que somos contra (mensagens para o programa Atualidade, referindo-se à imprensa). Alguns dizem que se curaram. Mas o estudo mostrou que o resultado foi o mesmo. O ex-ministro Mandetta usa a frase: "Se uma pessoa jovem tiver covid e usar cloroquina ou usar fitinha do Bonfim, o resultado é o mesmo". Queria que o senhor explicasse de novo que, nestes grupos, o resultado teria sido o mesmo.
Quando a gente trata de observações, a própria observação clínica pode ser enganosa por induzir vieses. Por isso é importante ter pesquisa delineada para evitar vieses que são complicadores da nossa percepção. Eu posso ter dito que tomei o tratamento x e melhorei da doença y. Só que a doença y ia melhorar sozinha, e pode dar uma falsa impressão. Já na nossa metodologia, que é um ensaio clínico randomizado, pegamos um número de participantes com a mesma característica e sorteamos eles. A randomização é sortear: ou dar tratamento padrão, ou tratamento padrão mais hidroxicloroquina, ou tratamento padrão com hidroxicloroquina e azitromicina. A randomização garante grupos comparáveis, então, eu elimino o viés da minha análise. Podemos tirar conclusões sobre qual tratamento foi melhor ou pior para aquela condição. Tem que se confiar na metodologia. Quando eu falo em eficácia, o padrão ouro é o ensaio randomizado. É uma metodologia complexa. O padrão clínico leva meses e anos. Devido à grande aliança dessas instituições (como do Coalizão), isso foi possível de ser realizado em dois meses, para ser usado por gestores durante a pandemia.
Esse grupo está fazendo estudo com outros medicamentos? O Estados Unidos, por exemplo, tem usado remdesivir.
Sim. Estamos testando outros. O Coalizão não se restringiu a hidroxicloroquina ou azitromicina. Temos agenda de busca de avaliação da eficácia e segurança de diversos potenciais tratamentos para covid, que inclui dexametasona, temos também o tocilizumabe, utilizado para artrite; também avaliando o efeito de anticoagulantes e ainda outros antivirais que já foram utilizados em combate ao HIV. São diversos estudos, todos eles avaliando potenciais drogas para covid. A hidroxicloroquina, para essa população que avaliamos, lá há 2 meses atrás, ainda era um tratamento potencial, quando começamos. Estudos mostravam sinal. Mas isso necessitava ser avaliado de forma bastante rigorosa antes que a gente partisse para conclusões em relação à prática.
O resultado coincide com a publicação da Revista Nature de um estudo mostrando que a hidroxicloroquina não inibe infecção de células do pulmão humano por coronavírus.
Exato, esse dado vem em consonância com dados dos estudos clínicos que estão saindo agora. Um mecanismo potencial de por que talvez não faça efeito. Estudos pré clínicos mostraram modelos experimentais e mostravam que elas poderiam inibir. Agora estão saindo estudos mais robustos mostrando a possível falta de efeitos dessa medicação.
Mas no final, para pacientes graves, em que circunstâncias a hidroxicloroquina pode ser usada?
Por enquanto, o que eu posso dizer é que nenhum estudo robusto, metodologicamente bem desenhado, para ter essas conclusões, mostrou benefícios do uso da hidroxicloroquina pessoas com covid, seja para pacientes hospitalizados, seja para pacientes laboratoriais, mais leve, mais grave, com início mais precoce ou mais tardio. Claro, existem algumas situações que não foram estudadas neste contexto, mas, atá agora, não tem nenhuma evidência de benefício nesse tipo de desenho de estudo.
Existe esse coquetel que vem fazendo sucesso. As pessoas falam sobre ele como profilaxia, o que é um equívoco, porque profilaxia é uma prevenção. Pessoas que não têm sintoma querem tomar remédios. E há prefeitos comprando ivermectina. Há estudo científico indicando a ivermectina como forma preventiva?
O mesmo estágio dela é o mesmo estágio da hidroxicloroquina. tem pouca evidência. Estudos mostram que esse tratamento é um potencial candidato, o que não significa que ele funcione ou que seja seguro nesta situação. Isso que a evidência nos diz hoje. Existem alguns estudos em andamento em relação à ivermectina, mas existem sérias dúvidas em relação à efetividade e segurança. É fundamental, do ponto de vista científico, que a gente aguarde resultado de estudos para se ter uma conclusão sobre isso também.
Ouça o áudio da conversa aqui
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