Sentado na sala de estar da ONG que o acolheu, Cid Souza de Melo, 59 anos, diabético que recebeu uma doação de rim há três, anuncia:
— Eu sou "macaúcho". Como sou de Macapá e recebi o rim de um gaúcho, me autodenominei assim. Só não posso tomar chimarrão por causa do tratamento — brinca.
O rim que devolveu a vida a Cid é um dos 12.202 órgãos doados no Rio Grande do Sul desde 1996, quando a contagem passou a ser feita pela Central de Transplantes do Estado. A marca dos 12 mil foi ultrapassada em maio deste ano. Em breve, o Rio Grande do Sul deve atingir outro número histórico: mais de 30 mil órgãos e tecidos transplantados. Até agosto deste ano, foram 28.928. O assunto ganha destaque neste mês com a campanha Setembro Verde, que busca conscientizar a população sobre a importância da doação de órgãos.
Cid e a esposa, Ana Maria Almeida, 61 anos, mudaram-se em 2012 para a Pousada da Solidariedade da VIAVIDA Pró-Doações e Transplantes, entidade sem fins lucrativos no bairro Jardim do Salso, em Porto Alegre. As primeiras consequências da diabetes já haviam sido sentidas por ele em 2005, quando perdeu a visão. Em 2007, começou a fazer hemodiálise para suprir a função dos rins. Em 2012, entrou na lista de espera por órgãos e precisou deixar a vida no Amapá, no norte do Brasil, e se mudar para o Rio Grande do Sul:
— Fui indicado 17 vezes para o transplante, mas não era o ideal para mim. Daí vinham aquela angústia e o desânimo. Mas aqui encontrei muito apoio. No início, foi difícil, pelos costumes e temperatura, mas a gente vai fazendo amizade e conhecendo o pessoal de vários lugares do Brasil. Estou até aprendendo a falar o "bah" — conta Cid.
Trabalho da Pousada da Solidariedade
A Pousada da Solidariedade acolhe famílias de vários Estados do país que aguardam transplante de órgãos: como alguns precisam ser feitos em poucas horas, os pacientes devem estar próximos dos hospitais, e o RS é uma referência. Desde 2014, mais de 2 mil pessoas se hospedaram no local, que tem capacidade para acolher 10 pessoas com um acompanhante cada. A ONG VIAVIDA foi fundada informalmente em 1999 e, formalmente, em 2000. Conta com mais de 70 voluntários, mantendo-se por meio de doações.
— Meu filho entrou na lista de espera por um rim com 15 anos. Como não tinha ninguém compatível, fui analisar como as coisas aconteciam por aqui, já que não podia ficar sentada esperando. A ideia é fazer com que as pessoas entendam a importância da doação de órgãos — explica a presidente da ONG, Lúcia Elbern.
Os indicados para a pousada passam por análise de condições socioeconômicas e são encaminhados com custeio das passagens pelos Estados de origem. Quem chega ao local não tem data para ir embora: os pacientes ficam alguns meses. Em alguns casos, anos. Por isso, os moradores da pousada comportam-se como uma família: reúnem-se na sala, fazem as refeições juntos e compartilham as angústias da espera ou alegrias do órgão doado. O local conta com videogame e televisão e algumas oficinas, como de culinária, para ajudar a amenizar a espera.
— A gente acaba se envolvendo. O pessoal chega aqui e é muito fechado, é tudo muito novo. Mas eles acabam se aproximando da gente porque dependem de informações, a gente faz o que pode para deixá-los mais seguros — relata Liziane Passos da Silva, 33 anos, funcionária do local há cinco anos.
Alguns passam mais rapidamente pelo processo. Foi o caso de Kaio Rodrigues Bras, sete anos, que entrou na casa no último dia 6 de agosto e recebeu o rim que precisava em 9 de setembro. O garoto, que morava com os pais no Rio de Janeiro, ficou doente quando viajou para a Paraíba, para passar a virada do ano. De lá para cá, precisou colocar mais de um cateter e fazer diversos exames, além de hemodiálise.
— Num domingo de manhã, eu estava dormindo e a doutora me ligou. Na minha cabeça, ela ia me dizer que ele estava com mais uma infecção, que os exames estavam alterados de novo. Ela perguntou: "Kaio acordou? Se não acordou, acorde, dê café a ele e venha para o hospital, porque apareceu um rim para ele". Eu não sabia nem o que falar, não acreditava — lembra a mãe, Tatiana Bras, 32 anos.
Tímido, Kaio se limitava a acompanhar a entrevista ao mesmo tempo em que jogava no celular. Perguntado sobre a saudade da terra natal, ele concordou:
— Gosto de brincar aqui, mas tenho saudade do Rio de Janeiro, dos amigos e da escola.
Negação de familiares ainda impede doação de órgãos no RS
O alto percentual de famílias que negam a captação de órgãos de possíveis doadores no Rio Grande do Sul ainda é alto, o que faz com que o número de transplantes não cresça tanto ano a ano. Em julho deste ano, o percentual de negativa familiar era de 49%, e caiu para 39% em agosto.
Em uma tentativa de conscientizar a população sobre a importância da doação, este mês é conhecido como Setembro Verde. Equipes de hospitais em diversas cidades têm feito entrega de panfletos e conversas com a população para tentar mudar a cultura no Estado. O coordenador da Central de Transplantes, médico Ricardo Klein Rühling, diz que a mobilização tem rendido frutos a cada ano:
— Esta taxa de negativa familiar pode baixar. É isso que acredito em relação à doação de órgãos. O que a gente vê é que as pessoas conhecem pouco, que há muitas informações equivocadas, o que atrapalha muito. Aí, temos dois trabalhos: desmanchar aquela impressão ruim e construir o que é verdade. Estamos fazendo palestras e ações conjuntas para divulgar a causa — explica.
A maneira de ser um doador de órgãos é avisando um familiar, que será responsável por autorizar ou não o transplante após o falecimento. Os órgãos são doados apenas em caso de morte encefálica (ou morte cerebral). As exceções são alguns transplantes de um dos rins, parte do fígado, medula óssea e parte do pulmão, que podem ser feitos por familiares vivos. No caso de tecidos, como córnea, ossos e pele, qualquer doador falecido pode doar, desde que com autorização da família.
Dificuldade para executar atividades simples
O ano de 2017 foi o que teve maior número de órgãos doados na história: 843. Em 2018, até agora, foram 468. No Rio Grande do Sul, há neste momento 1.377 pessoas aguardando por um rim, fígado, medula óssea, pulmão, córnea, coração ou rim/pâncreas. A fila de espera por um rim, com 979 pessoas, é a maior, já que a hemodiálise permite que se conviva mais tempo sem o órgão.
Edinalva dos Santos, 28 anos, veio para o Rio Grande do Sul de Teresina, no Piauí, e está na Pousada da Solidariedade desde dezembro do ano passado. Com uma doença chamada bronquiectasia desde criança, ela é uma das 85 pessoas que aguardam por um pulmão no Estado. Há quase três anos, usa oxigênio e precisa da ajuda da irmã para fazer atividades simples, como tomar banho e dar um passeio:
— Para tudo eu canso: para comer, andar, falar. Até para respirar. A minha função pulmonar é somente de 28% e, como meu tipo sanguíneo é raro, AB+, o tempo médio de espera é de um ano e meio. Tenho saudade da minha família, falo por telefone todo dia, mas é o jeito.
Emocionada, faz um pedido:
— Eu queria que as pessoas se conscientizassem para doar, porque quem está precisando vai ter outra qualidade de vida. Para saber o que é passar por isso, só vivendo na pele.