Quando a água subiu e atingiu o pescoço de Marizania Boteleiro, ela salvava os documentos enquanto tentava afastar ratos e baratas que nadavam em fuga da enxurrada. Quando a água baixou e Enio Silva reabriu a porta da pastelaria mais antiga da rodoviária, viu o negócio da família destruído pela lama.
Quando Gislaine Huff começou a limpar as paredes mofadas que haviam resistido à enchente de 1941, pensou que desta vez não seria possível seguir morando na casa construída pelo avô. Quando Jeison Scheid terminou de percorrer os galpões da fábrica inundada, não tinha a mínima ideia de como recuperar o maquinário.
O aluvião que rompeu comportas, derrubou diques e invadiu as ruas de Porto Alegre em maio de 2024 atingiu 65 mil empresas e 84 mil residências. Um ano depois, Marizania mora num condomínio com piscina e salão de festas, Enio reabriu a pastelaria, Gislaine recuperou a casa do avô e Jeison não só remontou a fábrica, como aumentou a produção e o número de funcionários.
A maior catástrofe ambiental da Capital destruiu móveis e objetos, dilacerou sonhos e esperanças, mas não conteve o ímpeto de recomeço dos porto-alegrenses.
Novo lar, longe do dique

Auxiliar de serviços gerais, Marizania Boteleiro estava no trabalho na manhã em que Porto Alegre começou a inundar. Por volta das 11h, o marido, Claudiomar, ligou avisando que a água estava subindo rápido demais. Desde 2014, eles moravam com o filho Roniel numa área invadida sobre o dique do Sarandi.
Eles mal tiveram tempo de levantar alguns móveis e salvar pertences de maior valor. Saíram com a água pelos joelhos e se abrigaram na casa de parentes, em um ponto mais alto do bairro. A chuva não parou e na madrugada a enxurrada alcançou também o lar onde haviam buscado refúgio. Foi quando o casal decidiu voltar em casa e tentar recuperar os documentos.
— Entrei com a água pelo pescoço e no caminho encontrava ratazana, aranha, barata, todos os bichos que tinham no mato, nos fundos da casa, que tentavam se socorrer subindo em mim. Eu tinha que segurar com a mão as pastas de documento e ir empurrando os bichos, apavorada — recorda Marizania.
A família morou 21 dias em um abrigo municipal e depois se mudou para Camaquã, no sul do Estado. A antiga casa, pela qual ainda pagaram as três últimas prestações de R$ 1 mil, acabou demolida pela prefeitura. Voltaram para Porto Alegre três meses depois, quando a escola de Roniel retomou as aulas. Foi quando uma mensagem chegou no celular de Marizania, avisando que eles haviam sido contemplados no programa Compra Assistida, do governo federal.
Marizania recebeu as chaves da casa nova das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, em novembro, fez a mudança. Desde então, a família mora num apartamento de 38 metros quadrados com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, em um condomínio da zona norte da Capital. Aos 41 anos, a auxiliar de serviços gerais comemora nova fase da vida.
Antes, eu precisava proteger os sapatos com sacola plástica para não chegar no trabalho com os pés embarrados. Agora, faço compra em aplicativo e, quando chega, o porteiro me chama de Dona Marizania, olha só. Cada vez que eu entro em casa, parece se acende uma luz que diz: 'Olha eu aqui'. Minha vida melhorou 100%.
MARIZANIA BOTELEIRO
Auxiliar de serviços gerais
Volta do pastel com meio século de história

Aos 83 anos, Enio Cardoso da Silva é o mais antigo permissionário da Rodoviária de Porto Alegre. Dono da Q-Pastel, ele mantém o negócio há meio século, ao lado da mulher, Cleci Cardoso, ocupando uma loja estreita nos fundos do terminal. Nos anos 1990, no auge do transporte rodoviário estadual, chegava a vender cerca de 400 pastéis por dia, fornecendo para outras lancherias da estação e do próprio bairro.
A queda constante na movimentação dos passageiros diminuiu o movimento, cenário que se agravou com a chegada da pandemia. Aos poucos, as vendas se estabilizaram em cerca de 150 pastéis ao dia. Até que veio a enchente de 2024.
— Eu trabalhei até o final da tarde. Às seis e pouco, sete horas, a gente fechou. E aí, de madrugada, alagou tudo. Perdi tudo. Não deu para aproveitar nada. Era só água e barro — conta Enio.
A rodoviária demorou dois meses para retomar o funcionamento 24 horas por dia, mas sem nenhum espaço comercial funcionando. Quando os ônibus retornaram, ainda havia lixo, lama e um odor pútrido concentrado nas lojas onde a água havia alcançado 2m20cm de altura.

Sem energia elétrica nas tomadas, Enio usou um lava-jato para limpar a pastelaria e começou a buscar alternativas para reabrir o negócio. O prejuízo somava R$ 60 mil e o comerciante não conseguiu acessar programas de crédito subsidiado oferecidos por órgãos públicos. A saída foi vender uma propriedade rural que havia herdado em Restinga Seca, usar as economias e renovar o espírito empreendedor:
— Recebi R$ 30 mil pelas terras, usei umas economias e me desfiz de outras coisas. Também renegociei o valor do aluguel e fiquei com apenas dois funcionários.
Demorou quatro meses, mas reabri a loja em setembro. O faturamento ainda não voltou ao normal. Cumprimos cada compromisso e estamos lutando para recuperar. Estou aqui há 50 anos e não vou abandonar.
ENIO CARDOSO DA SILVA
Dono da Q-Pastel, na rodoviária de Porto Alegre
Na mesma casa, duas enchentes depois

A aposentada Gislaine Huff tinha dois meses em 1958, quando foi morar na casa construída pelo avô quase duas décadas antes, no bairro Navegantes, na zona norte da Capital. Enquanto crescia correndo da sala ao pátio e da cozinha aos quartos, ouvia da mãe as histórias de como o casarão da Avenida Presidente Roosevelt havia resistido à histórica enchente de 1941. Eram relatos de pessoas passando na rua em meio à enxurrada, carregando malas e baús.
Em maio do ano passado, Gislaine testemunhou pesadelo semelhante. Levada de casa por um sobrinho na quinta-feira, dia 2, quando a ameaça de inundação se tornou iminente, ainda retornou no dia seguinte para pegar documentos e peças de roupa, mas a água já tomava conta da rua.
— Só consegui voltar no dia 30 de maio. Foi um dos bairros onde mais a água demorou a baixar. Os amigos só mandavam fotos de barcos passando pela rua, a água batendo 1m80cm aqui dentro — narra Gislaine.

Diante das paredes inchadas de umidade e mofo e do piso de madeira coberto por limo, Gislaine pensou que não seria mais possível seguir morando no local. O marido chegou a sugerir demolir o prédio ou transformar em espaço comercial. Gislaine titubeou, mas decidiu ficar.
Com a ajuda de amigos e parentes e munida de dois lava-jatos, a aposentada passou seis dias limpando peça por peça. Perdeu todos os móveis, inclusive cristaleiras antigas que estavam na família havia décadas. Dos eletrodomésticos, apenas a geladeira e a máquina de lavar voltaram a funcionar. Com R$ 30 mil que tinha em economias e os R$ 5,1 mil pagos pelo governo federal, ela comprou móveis novos e reformou os cômodos.
Foi um mês com a casa inundada, dois meses reformando e mais 30 dias pintando até o final de setembro, quando finalmente voltou a habitar o número 430 da Presidente Roosevelt.
Eu me sinto vitoriosa. Consegui voltar para minha casa. Muita gente não conseguiu. E isso aqui era dos meus avós, meu avô que botou tijolo por tijolo. Então eu me sinto feliz, embora não saia da janela quando começa a chover.
GISLAINE HUFF
Aposentada
Fábrica reerguida, negócio mais forte do que nunca

Jeison Scheid tinha 25 anos em 2013 e um dilema típico da juventude: como arranjar dinheiro para se manter surfando o verão inteiro em Santa Catarina? A primeira ideia lhe pareceu genial: fazer alfajor e vender para os argentinos que lotam as praias do Estado vizinho. Começou cozinhando 80 doces por dia, mas esbarrou na desconfiança dos turistas diante do brasileiro que dizia produzir o mais tradicional doce hermano.
De volta a Porto Alegre, ele insistiu no negócio e após alguns meses vendendo alfajor de bicicleta na Cidade Baixa começou a fabricação industrial da sobremesa, num espaço de 80 metros quadrados da Avenida Protásio Alves. Nascia a primeira fábrica da Alfajores Odara. Em 10 anos de atividade, a empresa cresceu e passou a ocupar 5 mil metros quadrados no Sarandi, zona norte da Capital. Em maio de 2024, Jeison tinha 50 funcionários e faturava R$ 18 milhões por ano.
— A gente estava em expansão, previa crescer 40% só em 2024. Só que atrás da fábrica corria o dique do Rio Gravataí. Fizemos uma barricada com sacos de areia e fechamos os galpões, mas não adiantou — recorda o empresário.
A correnteza que varreu o Sarandi atingiu 2m20cm na linha de produção, destruindo máquinas, estoque e matéria-prima. Com R$ 3 milhões de prejuízo, a Odara levou dois meses para voltar a operar. Nesse período, funcionários limparam o prédio, gestores acessaram linhas de crédito e 3.289 clientes aderiram a uma campanha de pré-venda, pagando por um produto que só seria entregue após a retomada das atividades.
Em julho, quando o maquinário foi religado, as encomendas aumentaram e a empresa fechou 2024 com faturamento de R$ 23 milhões, 19% superior ao ano anterior. Passado um ano da enchente, a Odara tem 65 funcionários, produz 10 mil alfajores por hora e chega a 12 mil pontos de venda Brasil afora.
— Devemos crescer mais 60% em 2025 e vamos lançar mais dois novos alfajores, passando de sete sabores para nove — exalta Jeison.
A enchente foi terrível, mas teve muita união na equipe. Teve funcionária que trouxe o marido para ajudar na limpeza e hoje os dois trabalham aqui. Quando a gente terminou de arrumar a primeira sala, sabia que ia conseguir recomeçar.
JEISON SCHEID
Dono da Alfajores Odara