Cercado desde novembro do ano passado, o prédio do antigo Hospital Ferroviário de Porto Alegre será revitalizado e transformado em moradia social. A estrutura cinzenta, de quatro andares, no bairro Floresta, ocupa quase meio quarteirão e servirá como moradia para 40 famílias ligadas à Cooperativa de Trabalho e Habitação 20 de Novembro. O investimento na reforma é de R$ 8,8 milhões, bancado pela Caixa Econômica Federal.
O projeto é licenciado pelo Minha Casa Minha Vida Entidades, modalidade que funciona por meio da concessão de financiamentos a beneficiários organizados de forma associativa por uma Entidade Organizadora (EO), como, por exemplo, associações, cooperativas e sindicatos. São utilizados recursos provenientes do Orçamento Geral da União (OGU), aportados ao Fundo de Desenvolvimento Social (FDS). É o primeiro nestes moldes a ser executado na capital gaúcha.
A estrutura imponente e inacabada na Rua Barros Cassal, no número 161, começou a ser erguida em 1960 para ser o Hospital Ferroviário e atender os trabalhadores da Associação dos Ferroviários Sul Riograndense. A obra foi paralisada em 1964, com a instauração da ditadura militar no Brasil. O trabalho nunca foi concluído e a posse do patrimônio voltou para a União.
A planta original do hospital mostra que haveria consultórios, lavabos, cozinha, farmácia, laboratório de pesquisa, salas de cirurgia, lojas, além de salas de espera, raio-x e cirurgia, entre outros espaços. Já o prédio anexo teria rouparia, lavanderia, depósitos, banheiro, dormitório para empregados e caldeiras.
Como vai ficar
Agora estão sendo retirados entulhos, para depois a reforma começar. Serão gerados de 15 a 20 empregos durante os trabalhos. A previsão de entrega ficou para novembro de 2026. A estrutura, de 2,9 mil metros quadrados, será dividida em 40 apartamentos de 35 a 60 metros quadrados. Serão 21 unidades de dois dormitórios e 19 de um dormitório.
O muro que divide o prédio da rua será derrubado para haver integração com a calçada. O condomínio não terá estacionamento. No lugar onde ficaria o espaço para veículos, haverá um pátio público, com a intenção de realizar eventos no local. O projeto arquitetônico é do escritório Arquitetura Humana.
Já a estrutura que fica aos fundos do prédio principal, que antes serviria como câmara mortuária e espaço de caldeiras, será usada como espaço cultural, com salas para oficinas de costura, artesanato e serigrafia. O espaço também terá brinquedoteca e horta comunitária.
No terraço, haverá placas solares que vão gerar energia para as áreas comuns, o que deve baixar o valor do condomínio, diz a fundadora da Cooperativa 20 de Novembro, Ceniriani Vargas da Silva. Para tornar a obra mais sustentável, serão reutilizados tijolos maciços retirados das paredes demolidas.
A ocupação
A construção do antigo Hospital Ferroviário ficou abandonada por 50 anos, até virar a ocupação e, depois, o assentamento 20 de Novembro. As famílias chegaram ao prédio em 2006, após serem removidas de um terreno na Avenida Padre Cacique que faria parte de uma das obras para a Copa do Mundo de 2014.
No começo, 14 famílias moravam no prédio, em parte da estrutura que estava segura para habitar. Em 2013, o projeto de revitalização começou a ser elaborado através do programa do governo federal. Em 2019, na gestão de Jair Bolsonaro, o projeto não avançou. Em 2023, o atual governo retomou os investimentos, prometendo concluir cerca de 20 mil unidades habitacionais.
O programa exige que o imóvel esteja livre e desimpedido para início das obras, porém o Ministério das Cidades não interfere nesse processo, que, no caso, foi coordenado pela entidade organizadora. Antes de estar desocupado, o prédio abrigava 20 famílias, que, durante a obra, passaram a viver de aluguel. A maioria era formada por mães solteiras e idosos, que vivem de aposentadoria ou auxílio do governo.
— Os que trabalham, são autônomos, atuando como pintores e costureiras, por exemplo — diz Ceniriani Vargas da Silva, que também é coordenadora Estadual do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM).
— Tinha um relógio de luz para as 20 famílias. Era uma situação precária, mas é o nosso lar. Crianças nasceram e cresceram aqui — lembra.
O público-alvo do Minha Casa Minha Vida Entidades é composto por famílias cuja renda bruta familiar mensal esteja limitada a R$ 2,8 mil, organizadas sob a forma associativa. É admitido, para até 10% das famílias atendidas em cada empreendimento, que a renda mensal bruta seja limitada a R$ 4,7 mil.
O hospital que nunca existiu
Na primeira metade do século 20, as ferrovias eram indispensáveis para o deslocamento de pessoas e de cargas no Rio Grande do Sul. Naquela época, as estradas de ferro e a estação de trem delimitavam o centro de Porto Alegre e seu entorno. A abertura da Avenida Farrapos, com terrenos disponíveis nas proximidades da Estação Férrea, se mostrou favorável à instalação de uma sede para a Associação dos Funcionários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul (AFSR) e de um hospital para o atendimento de seus associados.
Segundo o pesquisador e professor de arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), Sergio Marques, na década de 1940, um lote na esquina da Rua Doutor Barros Cassal com a Avenida Farrapos foi doado pela União aos associados. Para esse espaço, foi elaborado um projeto composto por três edificações, assinado pela arquiteta Talitha Correa Alvares e pelo engenheiro Hermínio da Silva Lima, aprovado pela prefeitura de Porto Alegre em 1951.
A execução da obra foi programada em duas etapas. Primeiro, seriam erguidos quatro pavimentos alinhados à Avenida Farrapos, onde ficaria a sede da associação. Depois, em outros quatro andares na Rua Doutor Barros Cassal, ficaria o hospital, além de um prédio anexo menor junto a ele.
Com elementos plásticos que remetem à Art Déco, o projeto do conjunto da AFSR contemplava também acessos específicos para veículos médicos, com entradas de viaturas pela Avenida Farrapos e pela Barros Cassal.
Em 1964, foi instaurado o regime militar no Brasil, gerando enfraquecimento de movimentos trabalhistas e sindicalistas. Com a desestruturação da Associação, causada pela perda de partícipes e de problemas financeiros, apenas o primeiro prédio foi finalizado, e abriga ainda hoje a Associação dos Funcionários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul.
Os projetos do hospital e do prédio anexo foram revisados e modificados, mas a obra nunca chegou a ser concluída. Apesar da localização privilegiada, o edifício permaneceu por anos em situação de abandono e degradação, sendo ocupado intercaladamente por moradores e comerciantes informais.
Nos anos 2000, o imóvel foi desmembrado. O volume voltado para a Avenida Farrapos foi outorgado à Associação dos Funcionários e a edificação inacabada ficou sob responsabilidade da Superintendência do Patrimônio da União. O terreno foi alvo de especulação imobiliária e de movimentos de trabalhadores sem moradia.