Na foto que circula pelas redes, um homem negro, cabeludo, com jeans sujos nos joelhos se escora numa parede, segurando uma garrafa de cerveja. Ele olha para baixo, com uma expressão triste e retraída. No portão ao seu lado, há uma frase escrita em branco, uma pergunta: “O que os olhos não veem, o coração não sente?”.
A imagem foi usada em homenagens ao mais famoso e querido morador de rua do bairro Moinhos de Vento, o Serjão, que morreu na noite de segunda-feira (4), aos 56 anos. GZH não localizou o autor do registro, que é antigo, nem encontrou ninguém que opte por lembrar de Sérgio daquele jeito.
Adotado pelos vizinhos, ele usava agora roupas limpas — preferencialmente camisas polo de cor neutra e calças doadas —, tinha barba feita e os cabelos cortados pelos funcionários de um mercadinho do bairro. Há cinco anos, também tinha identidade: era Sérgio Tavares Domingues, natural de Porto Alegre, filho de Pedro Nancy Domingues e Valdomira Tavares Domingues.
Ninguém sabe ao certo quando ele chegou ao Moinhos de Vento, mas fazia mais de 30 anos. Sem muitas palavras, se misturava à boemia da Padre Chagas para filar algum cigarro ou uma bebida — Cheiroso e Maloca eram alguns dos apelidos que lhe deram. Dizem que um dia, ao pedir dinheiro a um cliente que disse não ter, acabou se oferecendo para pagar o café do homem.
No alto de seus 1m90cm de altura, tinha rompantes de carinho quase infantis. Na William & Sons Coffee Co, onde ganhava café e pão de queijo, chegou a deixar um funcionário sem reação ao tascar-lhe um beijo na testa.
— Abraçava e beijava todo mundo, um beijo meio babado — ri o proprietário, Gustavo Albuquerque. — Era muito carinhoso.
Com diagnóstico de esquizofrenia (ouvia vozes e tinha oscilações de humor), teve seus remédios pagos por comerciantes do bairro. Dormia na frente da loja Estação do Banho, na Padre Chagas, quase esquina com a Luciano de Abreu. A proprietária, Vivian Neuls, colocou um deque de madeira e uma parede de vidro na lateral para protegê-lo do frio:
— As pessoas me perguntavam: como tu deixas ele dormir ali? Eu dizia que aqui era a casa dele, eu que cheguei depois.
Vivian era uma das pessoas que se revezavam para lavar os cobertores de Sérgio. Era também uma das mais ativas no grupo de WhatsApp criado para ajudar o morador de rua, chamado "Amigos do Serjão". A relação que os dois tinham era de amor e ódio, porque era também ela quem jogava fora sua cachaça e proibia o pessoal da rua de lhe dar cigarros. Mas logo ficava tudo bem — especialmente se a empresária lhe pagava um “xis tudo”.
Uma das fotos favoritas que Vivian guarda na memória do celular mostra Sérgio com uma taça de espumante dentro de um ofurô, ostentando um sorrisão.
— No dia em que a gente desativou o spa que tinha em cima da loja, ele foi o último a usar, com cheirinho, espumante… A gente fez um "dia de princesa" para ele — conta.
Mas nada compara com 2 de fevereiro de 2017, o dia em que fez sua carteira de identidade. Quem correu atrás do seu registro de nascimento e de encaminhar um RG foi Claiton Franzen, psicólogo e dono do Dometila Café. Foi uma saga de cinco anos, conta o empresário, pois praticamente não havia pistas da vida de Sérgio antes da Padre Chagas.
Claiton ainda conseguiu encontrar o pai dele, na época com 81 anos e morando na Zona Norte. Descobriu que Sérgio saiu de casa depois que a mãe morreu, aos oito anos.
O empresário soube da morte do morador de rua durante viagem aos Estados Unidos. Deu entrevista por telefone, se desculpando inúmeras vezes pelo choro. Os dois tiveram uma amizade bonita. Sérgio foi até na formatura de Claiton— na solenidade, no restaurante e na festa no Bar Ocidente também. Conta que naquela noite o morador de rua não bebeu.
— Era um lord, tinha um fidalgo dentro dele. De se levantar para empurrar a cadeira para uma mulher sentar. Quantos homens já fizeram isso por ti? — pergunta à repórter.
Lembra de uma conversa que tiveram enquanto o morador de rua ajudava a pintar cascas de ovos que Claiton distribuiria para os clientes na Páscoa. Perguntou para ele o que mudara na sua vida nos últimos anos. Serjão desconversou no começo, mas Claiton insistiu.
— As pessoas começaram a me enxergar — respondeu.
Contrariando a foto citada no começo desta reportagem, Serjão foi visto, e o coração sentiu. O do morador de rua e o de todos que se envolveram no seu caminho.
— Eu só queria poder agradecer ao Sérgio, ele me trouxe muitas coisas boas. Resgatou em mim coisas que a gente vai perdendo pelo caminho, de olhar para o outro — diz Claiton.
Os vizinhos chamaram o Samu quando Sérgio reclamou de dificuldade para respirar na segunda-feira. Ele foi levado a um posto de saúde, mas reapareceu horas depois em um posto de gasolina da 24 de Outubro. Alertada, Vivian foi até lá e o encontrou dentro de outra ambulância, sofrendo paradas cardiorrespiratórias. No atestado de óbito, a causa da morte consta como desconhecida.
Numa última vaquinha, os “Amigos do Serjão” juntaram R$ 4.480 para um velório de uma hora no Cemitério São Miguel e Almas. O corpo foi enterrado no final da tarde desta terça-feira (5).