Sentado nos degraus de acesso a uma agência bancária da Praça da Alfândega, Tom segura um pão em uma mão e a garrafa com os goles finais de cachaça na outra. Ele passou a fria noite de domingo (7) e madrugada desta segunda-feira (8) protegido pela marquise do prédio.
— Não quero sair da rua. A rua é onde eu tô com o meu povo. Já consegui emprego e saí, mas voltei (para a rua) porque sou viciado em bebida e gosto da liberdade que a gente tem — conta Tom, batendo no braço do amigo Dilson, artista catarinense que veio ao Rio Grande do Sul para viver das suas composições.
O sonho foi interrompido após Dilson ter o violão furtado — ou perdido, não sabe bem.
— Tomei umas "cangibrinas" e não sei se se levaram o violão ou se deixei em algum lugar. Igual, eu gosto de estar na rua. Tem muita solidariedade em Porto Alegre — avalia, enquanto mergulha a colher de plástico em uma sopa de legumes, servida em uma marmita doada por um morador do Centro Histórico.
Assim como Tom, ele prefere ficar ao relento do que ter de obedecer as regras dos abrigos oferecidos pela prefeitura da Capital aos moradores de rua. Neles, é proibido o acesso de pessoas alcoolizadas ou com visíveis alterações de comportamento causadas pelo consumo de drogas.
A situação vivida pelos dois é recorrente nas ruas da cidade e considerada por quem trabalha com acolhimento um dos motivos para vagas permanecerem desocupadas nos abrigos públicos. Mesmo com o frio recorde dos últimos dias, 101 vagas ficaram desocupadas na noite passada, das 415 ofertadas nos três locais que têm parceria com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc): Felipe Diehl (Praça Navegantes, próximo à Avenida Sertório), Albergue do Instituto Espírita Dias da Cruz (esquina das avenidas da Azenha e Ipiranga) e Albergue Municipal (Rua Comendador Azevedo, 215). Levantamento de 2018 da Fasc aponta que 4 mil pessoas vivem nas ruas da Capital.
Fasc distribuirá o que sobrou das doações no Gigantinho
Na sexta-feira (5), uma parceria entre Inter e Grêmio levou ao Gigantinho 7 toneladas de comida para as pessoas que vivem em situação de rua em Porto Alegre. Dos 250 que procuraram atendimento no local, somente metade permaneceu no ginásio colorado até o dia seguinte. Havia cerca de 300 vagas para quem quisesse dormir no local.
— Essa ação nos mostrou que temos, no município, uma rede de acolhimento bem adequada, com vagas sobrando. Nos preocuparíamos se os três albergues estivessem completos e o Gigantinho lotado — destaca a Comandante Nádia, secretária municipal de Desenvolvimento Social e Esporte, pasta responsável pela organização da ação do final de semana.
Mais de 50 mil peças de roupas e dois mil cobertores foram doados e encaminhados à Fasc, que fará uma nova distribuição. Parte dos alimentos não utilizados no sopão, que poderia ter servido até mil pratos, irá para os grupos de voluntários Cozinheiros do Bem e Adra Brasil. O que ainda restar dos alimentos não perecíveis será distribuído em cestas básicas a famílias pobres cadastradas na prefeitura.
— O que sobrou do que cozinhamos (cerca de 700 pratos de sopa) foi distribuído na rua, para quem não foi ao Gigantinho, ainda na sexta-feira — diz Júlio Ritta, idealizador da Cozinheiros do Bem, que destaca: — Em cinco anos de voluntariado, nunca vi uma mobilização tão linda e feita em tão pouco tempo.
Para a presidente da Fasc, Vera Ponzio, fica de legado da ação no Gigantinho o aprendizado de que é necessário "mais criatividade" do poder público para novas mobilizações:
— Enquanto assistência, fica o reconhecimento de que os moradores têm os seus desejos e que precisamos ser cada vez mais criativos para atraí-los para um ambiente protegido e que seja de ressignificação de vida. Muitos foram buscar agasalho e todos saíram com casacos e tênis. Viram que o que foi arrecadado era, de fato, para eles.
Por que sobram vagas na rede de acolhimento
Vera credita a sobra de vagas à complexidade da história de cada morador de rua e cita ainda a ajuda "característica do gaúcho", que se solidariza e costuma dar suporte às pessoas que passam a conviver com sua rotina, nas ruas e calçadas de seus bairros:
— Cada situação dessas é única. Cada indivíduo tem uma história de vida. Muitos romperam vínculos com as famílias porque têm outros objetivos. Além do uso de álcool e drogas, que também os afasta dos locais controlados. O que a gestão pública tem que fazer é ampliar o cardápio de alternativas.
Albergue que concentra quase metade do total de camas disponíveis na cidade, o Felipe Diehl teve, na semana passada, 50% mais usuários. Porém, não lotou em nenhum dia. Juarez Vasques, diretor do local, avalia que há, entre as pessoas que optam pela rua, a escolha por autonomia:
— A rua é a liberdade de muitos, que querem ficar lá mesmo que seja frio. É uma questão social bem complicada.
Segundo Vasques, na noite da ação no Gigantinho, muitos que frequentavam este abrigo regularmente, deixaram de fazê-lo: foram 150 abrigados na sexta-feira, 152 no sábado e 149 na noite de domingo para segunda-feira.
Cete pode ser aberto para acolhimento
Após o Gigantinho, outro local da cidade é apontado para ser usado no acolhimento de pessoas em situação de rua na Capital: o governo do Estado avalia ceder o Centro Estadual de Treinamento Esportivo (Cete), no bairro Menino Deus, para a prefeitura de Porto Alegre e demais parceiros que ajudem a organizar ação semelhante à realizada no ginásio do Inter na sexta-feria passada.
Secretário estadual de Esporte e Lazer, João Derly afirma que a estrutura do local é propícia:
— O Cete tem dois ginásios, um poliesportivo e outro utilizado para lutas, com tatames no piso. Isso ajuda a amenizar o frio.
Procurador do Estado, Max Möller, que atua cedido à secretaria de Esporte e Lazer, com foco na modernização do Cete, vê com bons olhos esta ideia:
— Temos uma boa área de chegada e saída para as pessoas, com amplo estacionamento, que facilita doações e preparação de algo.
Segundo Möller, o próximo passo é procurar a Defesa Civil, que tem conhecimento para coordenar ações deste tipo, segundo o servidor. Além disso, a agenda de eventos terá de ser analisada para concluir a análise.
— Por óbvio, estamos sensibilizados com o frio, preocupados com a questão da vulnerabilidade das pessoas em situação de rua. O Tesourinha (que pertence ao município), está sediando a etapa final de um campeonato de handebol que inicia logo cedo, às 8h. Vamos estudar novas ações — diz Comandante Nádia, simpática à alternativa.
Diretora de Inclusão Social do Inter, Najla Diniz afirma que qualquer novo pedido para uso do Gigantinho "será analisado". O clube, porém, terá uma série de jogos entre julho e agosto, com movimento muito intenso no complexo do Beira-Rio, segundo a diretora:
— Começamos a ação e agora queremos que se multiplique, como exemplo.