Nos últimos cinco anos, a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) pagou por diversos serviços sem ter certeza de que foram prestados pelas entidades conveniadas. A Fasc tem hoje um passivo de 10,5 mil prestações de contas pendentes, ou seja, casos de serviços que foram quitados pelo poder público sem a devida análise de execução. Servidores calculam que, entre 2013 e 2017, podem ter sido desembolsados R$ 175 milhões por esses serviços não-comprovados.
Isso é só uma parte do problema que levou o presidente do órgão municipal, Solimar Amaro, a pedir exoneração nesta terça-feira (17), com o agravante de que vinha sofrendo ameaças por conta das tentativas de mexer em contratos com indícios de irregularidades. A Polícia Civil já investiga irregularidades na Fasc. Nos últimos dias, a Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes contra a Administração Pública e Ordem Tributária (Deat) tomou o depoimento de mais de 20 pessoas da fundação.
A Fasc tem em torno de 400 convênios com 160 instituições, que prestam serviços, por exemplo, em abrigos para crianças, onde fazem o serviço de acolhimento. A Fasc tem 12 abrigos para atender cerca de 800 crianças e adolescentes, sendo que 10 estão sob gestão de instituições conveniadas. Essas entidades também atuam nos serviços de convivência e fortalecimento de vínculos, em que crianças são atendidas em horário inverso ao da escola com recreação, esporte, alimentação e auxílio a temas. Fazem atendimento a idosos e abrigagem para adultos também. E o descontrole sobre a efetiva prestação desses serviços vem sendo apontado há anos por órgãos internos da prefeitura e pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE), sem que uma solução fosse implementada.
Do passivo de 10,5 mil prestações de contas em atraso, 7,5 mil nunca foram analisadas, 1,5 mil esperam solução de pendências por parte das empresas e 1,5 mil aguardam reanálise. As entidades conveniadas recebem cerca de R$ 8 milhões por mês da Fasc.
GaúchaZH teve acesso a um documento interno de novembro de 2016 identificado como "Diagnóstico Organizacional, Inspeção Especial, Portaria 446/2016". Nele, são listados uma série de problemas com convênios: "...verificamos que 418 dos 420 convênios com entidades constam irregulares, pois suas vigências encerraram em 30/04/2016. Ressaltamos que a Fasc, com autorização da Direção Financeira, continua efetuando os repasses mensais para estas entidades".
Quanto ao fluxo dos convênios, foi constatado, por exemplo, que "os convênios não são registrados em livros ou em qualquer sistema informatizado", "os extratos dos convênios não são publicados no Diário Oficial do Município", "não são abertos processos físicos ou eletrônicos para as prestações de contas dos convênios. Os documentos são guardados em caixas ou envelopes" e "a Fasc não realiza, de forma regular, auditoria da aplicação dos recursos repassados às entidades"
Também foi registrado no diagnóstico que "aproximadamente 10 mil prestações de contas" estavam sem aprovação à época do levantamento (novembro do ano passado). E segue: "constatamos que a área de prestação de contas não efetua visitas nas entidades para verificação das despesas informadas nas prestações de contas, exceto em situações extraordinárias. A área alega a carência de servidores para efetuar a atividade. São 407 prestações mensais. Ao todo, são R$ 8 milhões repassados mensalmente (às entidades conveniadas)".
Em relação à pendência de documentos por parte de entidades, o levantamento registrou: "algumas entidades possuem pendências de documentação que ultrapassam um ano e, mesmo assim, continuam sendo prorrogados os prazos pelo Comitê Gestor de Convênios para regularização e durante este período a entidade continua recebendo recurso, por exemplo. Um processo de convênio consta pendência de certidão negativa e diversos relatórios de visitas insatisfatórios (falta de higiene e não localizadas crianças na associação) que ultrapassam um ano."
Desde que assumiu a fundação, no final de janeiro, Amaro vinha pedindo revisão de contratos e interferindo na autorização de pagamentos sob suspeita. Em casos concretos, quando conseguiu analisar contabilidades antigas, identificou divergências entre cobranças para atendimento de determinado número de pessoas e realmente quantas haviam sido atendidas. Neste caso, determinou o fim de 10 convênios. Amaro tentou parceria com universidades e conselhos de contabilidade para colocar as prestações de contas em dia, mas não teve êxito. Ao pedir demissão, disse ter esbarrado em pressões para fazer a correção de processos dentro da fundação.
GaúchaZH pediu à Fasc um posicionamento sobre as prestações de contas pendentes, mas não havia recebido até a publicação desta reportagem. Caso a fundação se manifeste, o texto será atualizado.
Problemas históricos
- Em agosto de 2016, Zero Hora revelou que pagamentos suspeitos feitos pela Fasc a uma terceirizada estavam há dois anos sem apuração. A suspeita era de que a empresa recebia pela mão de obra de enfermeiros e de técnicos de enfermagem que não trabalhavam nos abrigos.
- Depois de ZH revelar o problema, a prefeitura determinou que a Procuradoria-Geral do Município (PGM) fizesse uma apuração, que foi ampliada para outros problemas.
- O trabalho foi concluído em novembro de 2016, com determinação de abertura de seis sindicâncias para aprofundar a apuração de irregularidades. A inspeção da PGM detectou diversas falhas na gestão de contratos e convênios, no funcionamento de diretorias e setores, como o jurídico, e no controle de pagamentos.
- A PGM também fez determinações à Fasc na área de gestão administrativa e financeira, gestão de convênios e gestão de contratos. Foram listados 23 itens, a maior parte envolvendo a criação de mecanismos de controle de contratos, convênios e pagamentos, além da gestão de recurso pessoal.
- Também em novembro de 2016, ZH revelou nova suspeita na Fasc, desta vez, envolvendo aluguel de imóvel para um abrigo. Um casal de funcionários da prefeitura teria simulado a venda de uma casa para poder firmar contrato de locação com a fundação. Como eram servidores públicos, eles não podiam ter negócios com o município.
- O caso foi apurado pela Polícia Civil e pelo Ministério Público e resultou, em 2017, em denúncia contra o casal, uma terceira pessoa envolvida no negócio da casa e o ex-presidente da Fasc Marcelo Machado Soares.
- A partir das revelações de ZH, a prefeitura também determinou apuração em relação a todos os aluguéis. Em abril deste ano, a PGM concluiu sindicância apontando irregularidades em 34 contratos de imóveis alugados pela fundação. A apuração indicou haver indícios de desperdício de dinheiro público.
- Em agosto, a Polícia Civil fez nova operação na Fasc para apurar outro caso de irregularidade em aluguel, a operação Full House - Fase 2. Depois disso, o então presidente da fundação, Solimar Amaro, procurou a polícia para detalhar ações que vinha adotando.
- Nos últimos dias, a Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes contra a Administração Pública e Ordem Tributária (Deat) chamou em torno de 20 pessoas da Fasc para prestar depoimento em investigações que tramitam.