Lugares tão insuspeitos como uma praça arborizada, uma vistosa mansão no Moinhos de Vento ou uma simpática via do centro de Porto Alegre escondem um passado sangrento: enforcamentos, cárcere privado, tortura e até linguiça de gente estão entre os acontecimentos sinistros que teriam ocorrido nesses e em outros pontos da Capital, assombrando o imaginário popular. Enquanto registros mostram que os mais famosos realmente aconteceram, outros nunca foram totalmente esclarecidos.
– Há coisas imaginadas, como a história das linguiças de gente da Rua do Arvoredo (atual Rua Fernando Machado). Existia um cara que matava gente, mas não se comprovou que fazia linguiça das vítimas. Pelo menos três cadáveres foram encontrados na casa dele, inteiros. A história que se repete de boca em boca é sempre envenenada pela imaginação – avalia o historiador Sergio da Costa Franco, autor de diversos livros sobre a Capital.
Para o professor do curso de História da PUCRS Charles Monteiro, apesar de haver componentes de ficção, as principais lendas urbanas de Porto Alegre não são apenas fruto da imaginação popular. São acontecimentos reais que chocaram por sua brutalidade, inseridos em contextos históricos específicos.
– Casos que entraram para a memória urbana, que são brutais, violentos e até absurdos, fazem parte da história e têm explicação histórica. O homem que matou a Maria Degolada, por exemplo, participou de um grupo de soldados que tinha a degola como prática. As pessoas pegam um caso como esse hoje e pensam: como isso acontece? Mas a barbárie não é à toa. Ela está assentada sobre práticas históricas – esclarece.
Monteiro explica que boa parte dos casos brutais que ficaram conhecidos ocorreram da metade do século 19 até meados do século passado, período que marcou a aceleração do processo urbano na Capital. O espanto causado por alguns deles ajudou a mistificá-los: poucos estavam dispostos a se envolver com esses eventos, o que fez com que não fossem investigados a fundo, ficando com lacunas. Com a mudança das regras sociais, as histórias ganharam ainda mais peso, segundo o professor, porque passaram a se confrontar com novos valores, que as tornaram inaceitáveis – para citar um exemplo, o enforcamento de condenados era permitido pela legislação brasileira até o fim do século 19.
Ao longo dos anos, livros, peças de teatro e filmes contaram as histórias ou fizeram referência a fatos perturbadores que teriam ocorrido na Capital – oito deles relembrados ao final da reportagem. Na visão do pesquisador da PUCRS, contar e recontar casos assim também é uma forma de assimilá-los para que não se repitam:
– O afastamento e a negação são mecanismos de proteção que as pessoas têm: transformam aquilo em uma barbárie lendária. É importante porque elas reconhecem que não é um comportamento correto, que não faz parte dos padrões, uma espécie de limbo entre o civilizado e o bárbaro. A lenda coloca isso nessa fronteira, onde ela encontra um lugar pra conviver.