Eleitos para legislar, vereadores de Porto Alegre se uniram com a promessa de deslegislar. A frente parlamentar apelidada de "Revogaço" vai propor a anulação ou alterações em leis municipais de diferentes temas – a ideia é acabar com normas inócuas ou que criam entraves burocráticos para quem quer empreender.
Quem criou a iniciativa argumenta que há regulamentação demais. Só que, para revogar leis, os 21 vereadores do grupo terão de... criar novas leis. As propostas que surgirem na Frente Parlamentar de Revisão Legislativa passarão pelos trâmites da Câmara, como os outros projetos de lei, e serão submetidas à apreciação em plenário.
– É como uma vacina: é o vírus para nos proteger do vírus – justifica um dos idealizadores, Wambert di Lorenzo (PROS).
Na Câmara, tem quem questione a eficácia desse debate. Segundo Marcelo Sgarbossa (PT), boa parte das leis inúteis são simplesmente ignoradas, revogadas pelo desuso. Ele diz que a relevância depende de os integrantes da frente parlamentar apontarem em que exatamente essa legislação está causando um problema social.
– Pode gerar uma falsa expectativa de que a iniciativa ajudará de fato na vida das pessoas – avalia.
Ainda que os líderes citem leis inócuas, há normas em aplicação que poderão ser revistas, como a lei dos food trucks que, segundo Wambert, gerou uma série de restrições aos empreendedores do segmento – ao estipular limites para os veículos em bairros como a Cidade Baixa e o Moinhos de Vento, por exemplo.
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Ele admite que definir as leis que serão canceladas poderá levar à repetição de longos debates em plenário. Alguns deles, discutidos recentemente, como a própria regulamentação dos food trucks. Mas, discordando de Sgarbossa, ele defende que os vereadores precisam revogar leis inócuas porque se tratam de leis vigentes.
– É como uma cobra que tu crias no quarto. Pode te morder na hora que ela quiser – diz.
Encarregado de presidir a frente, Valter Nagelstein (PMDB) acrescenta que, se a lei existe, obriga o fiscal a executá-la, sob o risco de prevaricação.
– Acho que vale eu gastar o meu tempo como legislador para retirar a burocracia e tornar a sociedade mais dinâmica – reforçou o vereador.
Enquanto a frente se propõe a criar medidas para diminuir o excesso de leis, há cerca de 200 projetos de lei do Legislativo em tramitação. Integrante da frente, Márcio Bins Ely (PDT), assina mais de 30 deles – como um que prevê a entrega de uma síntese biográfica da pessoa que dá nome a cada escola aos alunos dessa instituição.
Ely defende que a quantidade não interfere na qualidade. Sobre a opinião dos idealizadores da frente, de que há um excesso de leis, afirma:
– Não é o meu argumento. O meu objetivo é aperfeiçoar a legislação para melhorar a qualidade de vida das pessoas – diz.
"É vender gato por lebre", diz especialista
Dentro dos exemplos citados por vereadores da frente parlamentar, as leis que beiram o bizarro são as mais numerosas. Mas Gustavo Grohmann, cientista político e professor da UFRGS, alerta que não há só legislações ultrapassadas no alvo do grupo de parlamentares.
– Estão vendendo gato por lebre, misturando tudo, porque querem fazer passar certas outras que lhes interessa muito – avalia o professor.
O especialista aponta duas leis com naturezas distintas: a que torna necessária a existência de recantos infantis em edifícios residenciais e a que proíbe a instalação de bombas de autosserviço nos postos de combustíveis. Enquanto a primeira não tem efetiva aplicação – "porque não é uma legislação que vai mudar esse tipo de coisa" –, a segunda, no futuro, poderia abrir brecha para a demissão de frentistas (ainda há uma lei nacional que proíbe bombas operadas pelo próprio consumidor).
Ressaltando que "não existe deslegislação", neologismo cunhado pelos vereadores, o professor explica que cada legislatura pode modificar a legislação existente. E isso não é uma novidade proposta pela frente: é uma atividade normal do parlamento. Sobre o excesso de leis apontado pelos que defendem a ideia, o especialista ressalta que é uma ilusão acreditar que uma lei escrita, por si mesma, é capaz de criar a realidade.
– Uma lei só vai criar realidade se tem pessoas e interação que a sustentem e a desenvolvam. Se não houver ninguém interessado, não adianta escrever alguma coisa, ela morre na prática.
ZH perguntou a Wambert se a frente parlamentar não é uma justificativa para os vereadores alterarem as leis que quiserem. O vereador ponderou:
– Isso aí tem um controle que é o plenário. A frente não tem o poder de revogar: o plenário vai ser soberano.