Numa dessas viagem intermináveis de avião, tentando chegar do outro lado do mundo, vi uma dúzia de filmes, de todos os gêneros – drama, romance, super-heróis... –, mas um deles, O homem que viu o infinito (2015), que eu nem sabia que tinha sido produzido, contava uma história muito linda e pouco conhecida. Sobre um jovem indiano que mudou para sempre a matemática, no início do século 20. Ramanujan nasceu na Índia em 1882, numa família pobre, que ficou ainda mais pobre quando o pai morreu. Ele mesmo teve varíola e sobreviveu, além de uma série de outras doenças. Desde cedo, contudo, Ramanujan "enxergava" fórmulas matemáticas complexas. Como papel era muito caro, escrevia em tábuas de cera, com palitos, ou nas paredes do templo em que rezava, com pedrinhas, arranhando as lajes. Era tão extraordinário, que alguns matemáticos de escolas locais, atônitos e compadecidos, passaram a fornecer folhas soltas para que anotasse as fórmulas que lhe vinham, como dizia ele, em visões divinas. Folhas nas quais escrevia febrilmente, e mais tarde encadernaria para levar com ele onde quer que fosse, seu bem mais precioso. Um rapaz descalço, com uma camisa claramente feita para alguém maior que ele, andando pelas ruas sujas de Madras, levando a tiracolo fórmulas que resolviam progressões geométricas e somas de séries infinitas para as quais nenhum matemático do mundo até então tinha qualquer resposta.
Por caridade de alguns, Ramanujan conseguiu chegar a Cambridge, Inglaterra, para trabalhar junto a um matemático inglês, G.H. Hardy, famoso entre outras coisas pelo equilíbrio de Hardy-Weinberg, conhecido dos geneticistas. Ao examinar os cadernos de Ramanujan, Hardy imediatamente pensou tratar-se de uma fraude – uma brincadeira de um colega. Típica reação de alguém confortavelmente alinhado com o status quo, que nasceu e cresceu na alíquota dominante da população, ao encontrar um talento inimaginável em alguém tão afrontosamente jovem, tão aparentemente insignificante. Justiça seja feita, Hardy compreendeu rapidamente que os cadernos eram apenas um resumo do que Ramanujan tinha dentro de si. Em matemática, é diferente ter uma solução, e provar a solução, derivar o caminho até ela. Ramanujan tinha mais soluções do que comprovações, e Hardy colocou-o a trabalhar nisso. Brigaram, pois para o jovem indiano era perda de tempo. Ele já havia derivado as provas, apenas não as tinha anotado, para economizar papel... Sendo ridicularizado e escanteado por seus colegas pertencentes à nata da intelectualidade inglesa por seu nome engraçado, seus deuses diferentes, sua pele escura, por ser vegetariano, indiano, Ramanujan passou seus últimos anos produzindo intensamente as provas que aqueles que se achavam seus pares necessitavam para aceitá-lo como membro do grupo. Morreu aos 32 anos, de tuberculose, certamente já contraída em sua terra natal, saudoso da família e da esposa, sem filhos. Sua antiga casa virou um museu. Ainda hoje, matemáticos ganham a prestigiosa Medalha Fields ao fornecer provas para os conceitos estabelecidos por Ramanujan há mais de um século.
Um outro compatriota famoso de Ramanujan cunhou a frase que está colada na porta do meu escritório: "seja você mesmo a mudança que deseja ver no mundo". Quantos meninos e meninas descalços passam por nós diariamente no Brasil? No mundo? Quantos desses indivíduos extraordinários morrem e morrerão de doenças infecciosas que não matam aqueles que têm casa e comida? Porque fazemos qualquer outra coisa hoje que não seja educar todas essas crianças, ansiando pelo que elas podem nos revelar de maravilhoso? Eu, que um dia acreditei que movimentos de rua podiam mudar o mundo, hoje tento apenas vencer o ranço que me impede de mudar a mim mesma.
* Cristina Bonorino escreve mensalmente no Caderno DOC.