* Doutor em Ciência Política, professor de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Há alguns anos, participei de uma reunião do Mercosul no Palácio Piratini. Olhando os símbolos da República Farroupilha ali presentes, um embaixador chileno me perguntou: "Mas naquela época o Brasil não era uma monarquia?". O diplomata ficou intrigado com a homenagem oficial a um movimento político que representou o maior desafio militar interno ao Império.
A História nem sempre é escrita pelos vencedores. Ela pode ser um diálogo do presente com o passado, as gerações revisam a memória sobre seus antecessores e por vezes optam por valorizar pessoas e instituições que foram combatidas ou menosprezadas, e ocasionalmente escolhem passar a segundo plano o que era visto como prioritário. Tome-se como exemplo a atual Praça da Concórdia, em Paris. O nome expressa o desejo de reconciliação após décadas de turbulência política na França, que levaram o mesmo local a ser inaugurado como Praça Luís XV e depois rebatizado como Praça da Revolução - e local de instalação da guilhotina, onde foi executado o rei Luís XVI, neto do homenageado original.
Na Alemanha, assombrada por uma sucessão de fantasmas autoritários, cada novo ciclo político foi marcado por intensos debates sobre a mudança de nomes de ruas, cidades e demolição/construção de monumentos. Após 1945, as duas Alemanhas deixaram de homenagear líderes nazistas e mantiveram em ruínas os símbolos do III Reich, como a chancelaria de Hitler e a sede da Gestapo. Depois da reunificação na década de 1990, a discussão foi o que fazer com o passado comunista do Estado oriental: todos os adeptos dessa ideologia deveriam ser apagados das celebrações públicas? O resultado final foi matizado. Caíram as estátuas de Lênin e as homenagens a Stálin, mas mantiveram-se muitas daquelas relativas a políticos, intelectuais e artistas marxistas cujo papel na história alemã foi considerado positivo, tais como Bertolt Brecht, Rosa Luxemburgo e o próprio Karl Marx.
Países cuja transição para a democracia foi mais difícil com frequência apresentam o convívio de memórias contraditórias, que representam valores que dividiram sua população. A África do Sul reformada pela liderança de Nelson Mandela rejeitou as políticas públicas do apartheid e passou a valorizar as heranças dos povos negros que formam sua cultura, mas manteve diversos monumentos e homenagens aos líderes brancos que criaram esse regime ou que cometeram outras atrocidades na colonização do país. Em grande medida como uma concessão aos africânderes, a minoria descendente de holandeses que governou a África do Sul durante o apartheid e até hoje forma a maior parte da elite econômica nacional.
O Brasil se redemocratizou há 30 anos, mas o fez por meio de um longo processo político marcado por omissões e injustiças que contrastam não só com Alemanha e África do Sul, mas com o dinamismo mostrado por muitos vizinhos sul-americanos, em particular a Argentina. Todos esses países tiveram comissões da verdade nos anos 1980-90 e julgamentos para os casos mais escabrosos de violações de direitos humanos nos períodos autoritários. Essas iniciativas foram a base para muitas das decisões tomadas sobre memória e homenagens públicas, mas estiveram ausentes da realidade brasileira até 2012!
Em grande medida, esses debates ocorreram no Brasil muito mais no âmbito da cultura do que nas políticas públicas. O trabalho de cineastas, escritores e músicos construiu uma memória sobre a ditadura e a luta pela democracia muito mais forte do que as iniciativas do Estado. Isso criou uma lacuna perturbadora: crianças e adolescentes em diversos casos estudam em escolas batizadas com nomes de ditadores, enquanto seus livros didáticos e os filmes e canções dos quais mais gostam lhes falam da importância de resistir aos regimes autoritários.
O Brasil homenageia muitos dos ditadores e torturadores da ditadura de 1964 - 1985 e também celebra políticos que alternaram governos autoritários e democráticos, como Getúlio Vargas. Festeja alguns líderes e movimentos políticos armados (Farrapos, Luís Carlos Prestes, Carlos Marighela) mas não outros (Cabanos). Por que uns são valorizados e outros esquecidos? Meu interlocutor chileno não ficou confuso à toa.
A história brasileira é marcada por autoritarismos de vários matizes ideológicos. A luta pelas liberdades civis e políticas, a experiência de perseguições, prisões e torturas fez com que muitas pessoas que haviam começado seu ativismo inspiradas por visões simplistas desenvolvessem o apreço por virtudes mais cotidianas, como tolerância, abertura para quem pensa diferente, acomodações e barganhas. Que os nomes de nossas ruas, praças, escolas e os monumentos que optamos por erguer nos lembrem dessa história difícil e contraditória - e que sempre nos apontem para o que temos de melhor em nosso esforço de construir um bom país.