Dois dos filmes mais cotados ao Oscar, que terá seus indicados anunciados nesta quinta-feira (23) pela Academia de Hollywood, utilizaram inteligência artificial (IA). A revelação de que Emilia Pérez (2024) e O Brutalista (The Brutalist, 2024) empregaram o software ucraniano Respeecher para aprimorar sotaques e vozes repercutiu na imprensa e nas redes sociais nesta segunda-feira (20).
O uso de IA provoca polêmica na indústria do cinema, da TV e do streaming nos Estados Unidos. Em 2023, esteve no centro das discussões de duas longas greves: a dos roteiristas (148 dias) e a dos atores (120). Os autores apontaram que os grandes estúdios estavam começando a substituir o seu trabalho através do uso de ferramentas semelhantes ao CHATgpt, que são capazes de criar ou recriar textos de forma automatizada. Os artistas pediam restrições e garantias em relação à inteligência artificial, como, por exemplo, remuneração equiparada à da atuação na vida real no caso das chamadas réplicas digitais. Os produtores também devem obter o consentimento dos herdeiros para "ressuscitar" astros já falecidos.
As revelações sobre o uso de IA em Emilia Pérez e O Brutalista não vão influenciar as indicações ao Oscar, porque essa votação já estava encerrada. Mas pode impactar na escolha dos vencedores, se os membros da Academia de Hollywood entenderem como uma distorção do trabalho artístico.
Com estreia no Brasil marcada para 6 de fevereiro, Emilia Pérez vem colecionando prêmios e indicações e gerando queixas e controvérsias. Representante da França na corrida pelo Oscar internacional, o filme dirigido por Jacques Audiard é um musical — à primeira vista, ousado e empolgante — sobre uma advogada (Zoe Saldana) que é contratada por um temido líder do narcotráfico mexicano (a atriz trans Karla Sofía Gascón) para forjar sua morte e ajudá-lo a ressurgir como a mulher que ele sempre sonhou ser. No Festival de Cannes, mereceu o Prêmio do Júri e um troféu para o elenco: Saldana, Gascón, Selena Gomez e Adriana Paz. No Globo de Ouro, ganhou nas categorias de melhor comédia ou musical, longa em língua não inglesa, atriz coadjuvante (Saldana) e canção original (El Mal). Recebeu 11 indicações ao Bafta, da Academia Britânica, e três ao SAG Awards, do Sindicato dos Atores dos EUA.
Agora, um resumo dos pontos polemizadores: Audiard não filmou no México, não escalou atrizes mexicanas para os papéis principais — e a dificuldade de Selena Gómez para falar espanhol virou motivo de zombaria — e contou que não pesquisou sobre o país para escrever a história, refletindo uma postura arrogante e eurocêntrica. Há quem reclame da própria abordagem como musical de um tema tão pesado, a violência do narcotráfico, que já provocou quase 500 mil mortes e cerca de 60 mil desparecimentos — particularmente, acho válida a ideia do cineasta francês e não vejo Emilia Pérez como desrespeito a essa tragédia cotidiana e à dor das famílias (que, claro, têm todo o direito de se sentirem ofendidas).
Há mais: em artigo publicado no jornal El País, o filósofo espanhol Paul B. Preciado, diretor do documentário Orlando: Minha Biografia Política (2023) e um dos principais pensadores contemporâneos sobre políticas do corpo, gênero e sexualidade, fez duras críticas ao filme. "Embora seja apresentado como o resumo do cinema moderno repleto de números musicais e invenções visuais e narrativas, Emilia Pérez é, quando se conhece a história das representações de pessoas trans, um pergaminho de ruínas semióticas coloniais e binárias tão previsíveis quanto anacrônicas", escreveu Preciado. (ALERTA DE SPOILERS) "O filme perpetua uma visão psicopatológica da transição de gênero baseada em quatro premissas: criminalização, exotização etnográfica, representação médica-cirúrgica da transição de gênero e assassinato. E este último não é um spoiler. Todos os filmes normativos sobre pessoas trans acabam matando o protagonista".
Diante de tudo isso, é um grãozinho de areia a questão sobre o uso de IA em Emilia Pérez. A tecnologia foi empregada para deixar a voz da personagem de Karla Sofía Gascón mais aguda nas canções.
O caso de O Brutalista me parece mais controverso. Até porque seu diretor, Brady Corbet, gaba-se de ser um adepto do cinema analógico — seu longa-metragem foi filmado em 35 mm no formato VistaVision, que em Hollywood havia sido usado pela última vez em 1963, na comédia Meus Seis Amores — e discursa que o filme é sobre "a complexidade humana".
Ganhador do Leão de Ouro no Festival de Veneza, vencedor do Globo de Ouro de melhor filme dramático, direção e ator (Adrien Brody) e indicado a nove Baftas, O Brutalista será lançado no Brasil no dia 20 de fevereiro. É um épico de três horas e 34 minutos (consta que haverá 15 minutos de intervalo). Conta a história do fictício arquiteto húngaro László Toth, um judeu sobrevivente campos de concentração nazistas que foge da Europa após a Segunda Guerra Mundial para recomeçar a vida nos Estados Unidos. Lá, é contratado para projetar um instituto público por um dono de indústria que pode ajudá-lo a reencontrar a esposa (Felicity Jones), também salva do Holocausto.
A IA foi utilizada no design de produção — em uma série de projetos arquitetônicos e edifícios concluídos na sequência final do filme, segundo matéria do site Deadline — e na interpretação. Brady Corbet comentou sobre a primeira situação, que lembra a de Entrevista com o Demônio (2023): "Judy Becker (a designer de produção) e sua equipe não usaram IA para criar ou renderizar nenhum dos edifícios. Todas as imagens foram desenhadas à mão por artistas. Para esclarecer, no vídeo memorial apresentado no fundo de uma cena, nossa equipe editorial criou imagens intencionalmente projetadas para parecerem renderizações digitais de baixa qualidade da época dos anos 1980".
Já o editor do filme, David Jancsó, revelou em conversa com o site RedSharkNews que o Reespeacher foi utilizado para melhorar sotaque húngaro de Adrien Brody e Felicity Jones em algumas cenas. "Eles treinaram e fizeram um trabalho fabuloso, mas queríamos também aperfeiçoar isso, para que nem mesmo os locais notassem a diferença. Se você vem de um mundo anglo-saxão, certos sons podem ser difíceis de conseguir", afirmou Jancsó, acrescentando: "É controverso na indústria falar sobre IA, mas não deveria ser. Usamos IA para criar esses pequenos detalhes que não tínhamos dinheiro ou tempo para filmar".
Corbet também respondeu às críticas: "Adrien e Felicity trabalharam durante meses com a treinadora de dialetos Tanera Marshall para aperfeiçoar seus sotaques. A tecnologia inovadora Respeecher foi usada apenas na edição de diálogos no idioma húngaro, especificamente para refinar certas vogais e letras para maior precisão. O objetivo era preservar a autenticidade das performances de Adrien e Felicity em outro idioma, não substituí-las ou alterá-las".
Na minha opinião, há um paradoxo quando se usa inteligência artificial em nome de autenticidade.
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