
* Luís Augusto Fischer é Professor de Literatura na UFRGS e escritor, autor de inteligência com dor (2009). Escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
Uma das rotinas mais preciosas deste ano em Paris é a de levar os filhos à escola, de manhã, e buscar à tarde. Escola pública, gratuita, leiga, de qualidade, para todos e perto da casa de cada aluno, exatamente como não soubemos fazer no Brasil até hoje.
As aulas começam às 8h30min e encerram às 16h30min, salvo nas quartas, em que só há aulas de manhã. Se os pais precisam, os filhos podem permanecer até as 19h na escola, com supervisão, fazendo temas, estudando, lendo. Outro detalhe, que eu desconhecia e imagino que muitos ignorem: o calendário escolar francês tem as férias de verão, grandes, de dois meses, mas tem mais quatro - sim, quatro - pequenas férias, de duas semanas cada (Todos os Santos, Natal/Ano Novo, Inverno e Primavera). Isso dá uma dinâmica toda particular para o ano, fazendo os alunos relaxarem e desejarem voltar aos estudos, a cada tanto. (Se os pais precisam, de novo os alunos podem ir à escola nessas férias pequenas, onde ficam aos cuidados de instrutores.)
O ensino é puxado. Aos 8 anos, no terceiro ano do fundamental, além de ficar as oito horas diárias na escola - mas com duas horas de intervalo para almoço, além dos recreios curtos, o que lhe garante uma enorme possibilidade de interação com os colegas -, meu filho sempre tem algum tema de casa. Fazer contas de cabeça ou por escrito, copiar algumas vezes palavras de grafia mais estranha, responder perguntas. Todo o santo dia.
Mas eu queria falar da rotina de acompanhar os filhos à escola - andando a pé. A escola fica no bairro, a 15 minutos de caminhada leve. Muitas, muitíssimas crianças, a partir dos 6 ou 7 anos, vão sem os pais, com irmãos mais velhos, vizinhos, sozinhas mesmo. Não há medo, porque há infinitamente menos risco de qualquer problema, de assalto ou de trânsito. E há, em medida também desconhecida para os padrões brasileiros atuais, convivência: na mesma calçada e depois na mesma sala estão os filhos das classes confortáveis e das desconfortáveis, como os filhos de imigrantes e os remediados. De todas as cores de pele, de qualquer origem geográfica.
Não é o paraíso: é um país republicano.
Segunda passada, eu fui com o filhote falando da vitória do dia anterior, do nosso Penta de novo, essas belezas da vida, tendo ao fundo uma paisagem de primavera inteira. (Ah, as conversas que temos tido nesses trajetos...)
Apareceu um raro caso de lixo derramado na calçada. Ele apontou e falamos nisso. Lembrei que no Brasil há quantidades impensáveis de cachorros vadios, sem dono, que mexem nas lixeiras em busca de comida e esparramam tudo, os "vira-latas", até a palavra apareceu. Eu sondei-o sobre o que ele achava que significava isso, "vira-latas", e ele imaginou que esses cachorros bagunçam tudo, viram latinhas de refri...
O velho pai pediu licença para contar que naquele tempo - pai sempre tem aquele tempo para evocar - as lixeiras eram latas, mesmo, desta altura assim, e cada um levava sua lata para a calçada, para esperar a passagem do caminhão de lixo. "E nem se separava o lixo, né, pai?" Sim, exatamente.
Por caminhos enviesados, como ocorre em toda boa conversa, ele lembrou de um seriado que eu via na tevê do meu tempo de guri e que havia mostrado a ele no youtube - o famoso Vigilante Rodoviário, e seu fiel cachorro Lobo. Já mostrei O Vigilante Rodoviário, o National Kid, Os Patrulheiros Toddy e o Zorro, a obra completa dos seriados de tevê dos meus oito anos.
"Como era mesmo o nome do Vigilante, pai?" Eu lembrei: Carlos. Era chamado de Vigilante Carlos. E a só evocação deste nome, tão singelo, nos fez sorrir. Ficamos repetindo, "Vigilante Carlos", "Vigilante Carlos". Pensei que aquele foi um tempo de Carlos, muitos Carlos, em profusão, a começar do então onipresente Roberto e seu calhambeque.
Eu lembrei de um amigo, Carlos Edler, e propus: quando voltarmos ao Brasil, vamos chamar o Carlos de Vigilante Carlos? E caímos os dois na maior risada que aquela rua deve ter visto, em muitos anos, nesta cidade sempre contida em expressões assim tão caras aos brasileiros. Sim, vamos! E vamos perguntar pra ele - "Cadê o Lobo, Vigilante Carlos?".
E rimos muito, muito, pela calçada afora. Na entrada da escola, ele ainda me perguntou, antes de entrar: "Pai, tu vai escrever essa história no teu diário?".
Vou sim, filhote. Pra nunca esquecer.
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