* Doutora em História do Brasil, autora do livro A Resistência da Mulher à Ditadura Militar no Brasil (Rosa dos Tempos, 1997)
Inês Etienne Romeu morreu no último dia 27, aos 72 anos, em sua casa em Niterói. Morreu em paz, já que viva não superou os traumas físicos e psicológicos herdados da ditadura militar brasileira. Mineira de Pouso Alegre, aluna da Universidade Federal de Minas Gerais e bancária, como muitas jovens brasileiras engajou-se em partidos revolucionários lutando pela redemocratização do Brasil.
Em 1971, foi presa em São Paulo por Sérgio Paranhos Fleury, sob a acusação de ter participado do sequestro do embaixador suíço. Depois de ser torturada, espancada e pendurada em pau de arara, disse aos torturadores que havia marcado um encontro com companheiros no Rio de Janeiro. Ávidos por caçar qualquer opositor ao regime, levaram Inês de carro ao Bairro Cascadura. Ao chegar ao local determinado, seus algozes deram-se conta de terem sido ludibriados pela jovem militante que se jogou sob as rodas de um ônibus. Não morreu.
Após ser tratada, foi levada, em maio de 1971, para uma casa em Petrópolis, Rio de Janeiro, de propriedade de um alemão chamado Mário Lodders. Ali começa sua história de terror. Não foi por acaso que recebeu o Prêmio de Direitos Humanos em 2009 na categoria Direito à Memória e à Verdade. Inês Etienne Romeu foi a única sobrevivente da Casa da Morte. Quem entrou, não saiu com vida, com exceção de Inês, que viveu para acertar contas com a injustiça e o terror. Permaneceu na Casa por 96 dias, sob tortura física e psicológica, choques elétricos, espancamentos e vários estupros. De tantas bofetadas, seu rosto ficou irreconhecível. Tentou se matar várias vezes, como forma de se livrar dos sofrimentos e das humilhações.
A humilhação das mulheres ditas "subversivas", tratadas como "putas comunistas" pelos seus algozes, foi uma característica dos torturadores. Inês, em suas memórias, relata que, além dos estupros, era obrigada a cozinhar nua, sendo humilhada pelos carcereiros: "Colocavam-me completamente nua, de madrugada, no cimento molhado, quando a temperatura era baixíssima". A humilhação pela nudez foi uma constante, como pude atestar nas entrevistas que realizei com mulheres militantes presas pela ditadura militar: "Cada vez que estava na cela de tortura eles tiravam a minha roupa", contou-me uma militante. Ou, como relatou outra: "Minha irmã foi presa e torturada na vagina, nos seios, na frente de meu irmão. Ela teve sérios problemas na coluna, por causa das torturas, do choque elétrico, do pau de arara. Ela não gosta de comentar, porque ficou muito marcada".
Em agosto de 1971, acreditando que atuaria como infiltrada na VPR, Inês foi entregue a uma irmã, pesando apenas 32 quilos. Após este episódio, para mantê-la viva, seus advogados decidiram pela prisão de Inês, que foi encaminhada ao Presídio Tavarela Bruce. Condenada à prisão perpétua, foi libertada somente em 1979 pela lei de Anistia. Manteve, contudo, a memória lúcida: em 1981, ela localizou a casa onde torturavam, estupravam e matavam militantes de esquerda, em sua grande maioria muito jovens.
Graças à memória de Inês, vários torturadores foram identificados, assim como a atuação do médico Amilcar Lobo, responsável por manter os prisioneiros vivos.
Em 2003, como se não bastassem todos os sofrimentos que havia passado na casa do Terror, Inês sofreu uma agressão dentro de sua casa e foi internada com traumatismo cranioencefálico, que comprometeu sua capacidade de falar e andar. Até hoje o agressor não foi identificado, e a polícia registrou o caso como "acidente doméstico". Afinal, Inês Etienne era uma memória viva.
Ainda hoje, o silêncio é regra. O torturador Paulo Malhães, o "Doutor Pablo" idealizador dos porões da Casa da Morte, uma "casa de conveniência", segundo ele, quebrou o silêncio sobre o assunto, depondo na Comissão Nacional da Verdade. "A gente dava sustos, e o susto era sempre a morte. A casa de Petrópolis era para isso." Segundo ele, a libertação de Inês foi um erro dos agentes que acreditaram que ela havia se tornado uma delatora e aceitara a condição de infiltrada. Seu depoimento foi dado em fevereiro e março de 2014, e no dia 25 de abril de 2014, foi encontrado morto em seu sitio em Nova Iguaçu (RJ).
O testemunho de Inês Etienne Romeu sobre a Casa da Morte foi entregue em 1979, uma semana após libertada de seus oito anos de prisão, a Eduardo Seabra Fagundes, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Seis documentos que continham as informações sobre o período que esteve presa: as sevícias a que foi submetida, as tentativas de suicídio, o codinome dos torturadores, o nome dos militantes que por lá passaram e morreram, e um número de telefone.
Ao saber, em 1989, que não receberia indenização por causa da prescrição. Etienne respondeu: "Eu não quero um tostão de indenização. Esse dinheiro de indenização vem do povo e a grande vítima é o povo (...) O que eu quero é que a Justiça de meu país reconheça oficialmente que eu fui sequestrada, mantida em cárcere privado, estuprada três vezes por agentes públicos federais pagos com o dinheiro do povo brasileiro".
A história da ditadura militar no Brasil ainda está para ser contada e transformou-se numa disputa pela memória, portanto uma disputa pela história. Inês Etienne Romeu merece nosso respeito e admiração, porque fez de sua dor uma luta pelos direitos humanos. Respeito pela sua coragem como contribuição à memória e à história de nosso país.