* Professor de Literatura na UFRGS e escritor. Escreve quinzenalmente no PrOA.
Pesquisadora séria da área de Ciências Sociais escreve para um jornal de grande circulação para lamentar a situação de sua língua. Frente ao inglês, sua língua materna quase nada mais pode. A pesquisadora relata ida a um congresso de sua área, em que faz contato com um colega seu, dos Estados Unidos. Ela conhecia o colega por escrito, porque lê em inglês, como todo mundo precisa ler, na universidade, mas a recíproca não é verdadeira: o colega nem sabe que ela existe, por mais importante que ela seja lá em sua terra. É que ela nunca foi traduzida ao inglês.
Nas ciências duras, já é corrente pesquisadores de qualquer país escreverem direto em inglês, para poder constar em alguma revista acadêmica relevante. Da mesma forma, universidades mundo afora prestigiam a existência de aulas diretamente em inglês. Mas nas áreas de humanidades e, pior ainda, de literatura e artes, a coisa não é bem assim.
Não se trata apenas da diferença entre as línguas, mas de uma diferença relevante para a existência mesma do objeto que se estuda. Ponhamos aí o estudo da literatura, para exemplo. Como será o mundo ideal: este que vai no caminho das ciências duras, expresso monocordicamente em inglês? Se for assim, será melhor que daqui para diante os escritores passem a escrever em inglês, pura e simplesmente, vivam eles na Holanda, na China, no Brasil, no Congo?
E os escritores que já fizeram a história de sua língua, que não o inglês - Voltaire, Cervantes ou Machado de Assis, digamos -, o que fazer com eles? Vertê-los ao inglês e então esperar que assim sejam lidos?
Essa mesma pesquisadora - vou dizer quem é e onde vive, para acabar com o suspense: Sonia Combe, historiadora e professora universitária francesa - conta que, num encontro internacional recente, na Suécia, esteve numa reunião com colegas basicamente do Leste Europeu, tendo o inglês como língua de trabalho. Todos falavam alguma modalidade de inglês, relativamente acanhado, de sintaxe simples, com sotaques os mais diversos. E se entendiam na boa. E ocorreu que havia entre eles um, apenas um, falante nativo do inglês, um irlandês. Quando ele falava, não era entendido por nenhum dos demais. (E, perguntado, ele confessou que não entendia metade do que os demais falavam, em inglês.)
Sonia Combe, boa francesa que é, achou um conceito, deu um nome ao fenômeno - "alienação linguística". Ele reflete bem o que está ocorrendo em escala ampla na vida universitária por toda a parte, incluindo o Brasil: todo mundo agora quer ser cosmopolita, participar de foruns internacionais, ser visto como integrado; toda e qualquer universidade quer ter (e ser vista como tendo) relevância para fora dos seus muros e para fora de sua geografia de origem. O inglês é o caminho óbvio para chegar lá.
O artigo dessa historiadora fazia uma reivindicação: constatando que o francês era uma língua inexistente fora da França e dos países francófonos (que, comparativamente ao português, são um universo vastíssimo), e que por isso o trabalho acadêmico escrito em francês inexistia fora da França, e levando em conta que não teria cabimento passar a formatar todo o pensamento crítico em inglês, ela propunha, limpamente, desenvolver meios de auxílio à tradução, naturalmente para o inglês.
Chega a dar uma vertigem pensar no lugar do português nisso tudo. Certo que não temos o passado do pensamento francês, que foi uma ponta de lança da melhor inteligência ocidental por séculos; nossos pensadores com alguma relevância fora do Brasil e do português são uma dúzia de três ou dois - um Gilberto Freyre aqui, um Roberto Schwarz ali.
E, bem, nossos pensadores nem em sua casa desfrutam de bom prestígio; nosso país, eterno candidato a algum papel relevante no mundo, não só não tem qualquer política de divulgação da cultura letrada brasileira (a China anda espalhando Instituto Confúcio mundo afora, inclusive em Porto Alegre) como, para vergonha total, sequer consegue armar um Acordo Ortográfico decente com Portugal.
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