
O Bom Fim inventou o hiperlink.
Um pouco de História: o Campo da Várzea era descanso dos carreteiros que traziam gado para abastecer Porto Alegre. Em 1872, era inaugurada ali a capela Nosso Senhor Jesus do Bom Fim.
Jacob estudava violino. João vivia na colônia africana, perto da Francisco Ferrer. Jacob e João jogavam bola. No meio da rua, porque a rua só era rua nas horas vagas.
Especial Aniversário de Porto alegre:
VÍDEO: Dia de Feira
Galeria de fotos: O Bom Fim em 10 imagens
Primeira pessoa: "Lembro de ter ido ainda criança ao bar Fedor"
A receita de um bairro meio louco: misture imigrantes judeus da Europa Oriental, descendentes de escravos, intelectuais de todos os matizes, boêmios, estelionatários, hippies, punks, darks, Moacyr Scliar, Nei Lisboa, lojinhas, funerárias, quitandas, bares, mesas de sinuca, campeonatos de palitinho, ciclistas da Redenção, michês da José Bonifácio, um rabino ortodoxo, mendigos, estudantes da UFRGS, cerveja, guefilte fish e churrasco. Não precisa temperar. O Bom Fim foi editado quadro a quadro. Frame a frame.
Mais um pouco de História: o bairro foi criado oficialmente em 1959, pela Lei 2.022, de 7 de dezembro.
Houve até uma Guerra no Bom Fim. E infinitas batalhas. A da Osvaldo Aranha: polícia contra malucos do Bar Ocidente. A das ídiche mames: Sara contra Esther, pra ver qual filho se formaria primeiro na Medicina. A do silêncio: boêmios contra os mal dormidos moradores.
E os momentos de paz, comprando batatas orgânicas na feirinha, ouvindo Os Almôndegas no Araújo Vianna, subindo a Felipe Camarão, desviando da folha de palmeira imperial que despenca.
Wremyr Scliar, irmão do Moacyr, conta uma história que jura ser verdadeira. Havia no Bom Fim um açougue kosher, que vendia carnes preparadas de acordo com as leis alimentares judaicas. Lá trabalhava um mulatinho, que com o tempo aprendeu a falar ídiche. Um dia, o rapaz estava no porto quando um navio com imigrantes alemães atracou. O ídiche é parecido com alemão. Os passageiros, tontos de calor, foram descendo. O mulatinho puxou conversa. E um dos recém-chegados quis saber como o rapaz tinha aprendido aquela língua, ainda que meio enviesada. E o mulatinho respondeu: "Eu sou alemão. Fiquei assim depois de duas semanas nesse sol".
As histórias do Bom Fim têm começo e meio.
O último pouco de História: em 1954, quando Getúlio se matou, quiseram que o Bar Fedor, na esquina da Felipe Camarão, fechasse suas portas. Não foi possível. O Fedor não tinha portas.
Existe uma piada nas redações do jornais. Quando uma reportagem sobre turismo não tem título, invariavelmente o título passa a ser "Terra de Contrastes". Virou clichê. Londres, terra de contrastes. Sapucaia, terra de contrastes. Nova Birobidjan, terra de contrastes. O problema é que não cabe outro título no Bom Fim. Então, melhor deixar sem.
Sabores, novelos e raízes
As ruas do Bom Fim já viram passar estudantes cabeludos em marcha contra o regime, punks de butique em busca de causa nenhuma, homens e mulheres conversando em ídiche (dialeto que mistura alemão, línguas eslavas e hebraico).
Não eram tribos. Eram legiões.
As ruas do Bom Fim conservam sua história (ainda que a tradicional feirinha da João Telles tenha encolhido; sobrou meia dúzia de banquinhas).
A loja Sabra vende o que antes só era feito em casa. Bolinhos de peixe, arenque, kniches, pratos típicos da culinária judaica da Europa Oriental.
- Hoje só uns trinta por cento dos clientes ainda falam ídiche - diz o proprietário, Mordechai Brodacz. - São os mais velhos - emenda. A globalização invadiu o antigo gueto. Coabitam nas mesmas prateleiras produtos feitos no Brasil, Líbano e, é claro, Israel.
Na Osvaldo Aranha, Regina Katz abre as pesadas portas de loja Ao Crochét. São 10 da manhã e o tempo ameaça chuva. Impossível contar quantos produtos se amontoam no local. Agulhas, novelos, linhas, objetos variados que contam a trajetória de um negócio que se confunde com a história da família (já são 86 anos na avenida).
- Não sobraram muitos patrícios por aqui - comenta dona Regina.
Regina Katz na loja Ao Crochét, há 86 anos instalada na calçada da Osvaldo Aranha - Foto: Adriana Franciosi
Talvez ela tenha razão, mas não tanta assim. Os patrícios ainda estão por ali. Só que mudaram. Hoje usam piercings e tatuagens e cantam rock em vez de Hava Naguila.

Impossível não ser um pouco saudosista ao falar de um bairro que sempre, mesmo sem saber, viveu em ponto de ebulição. A partir da década de 1990, os moradores organizados expulsaram boa parte da boemia, que migrou para a Cidade Baixa. Votos para o já falecido vereador Isaac Ainhorn, capitão da batalha.
O Bom Fim seria então, outra vez, um bairro família. Só que não.
Difícil sintetizar a alma de um lugar assim. Há os que têm saudade, há os que olham pra frente.
Grupo Escolar Anne Frank, 1976: perfilados, os alunos acompanham a cerimônia de plantio de árvores na Travessa Cauduro. O então secretário municipal Larry Pinto de Faria discursa enquanto as mudas são enterradas.
Hoje, os troncos são altos e fortes. As raízes sempre estiveram lá.
O Bom Fim em: "Dia de Feira":