A série de reportagens "40 anos da Legalidade" foi publicada em Zero Hora em agosto de 2001.
A manhã de domingo, 27 de agosto de 1961, selou o destino da Campanha da Legalidade. O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, chamou o secretário de Justiça, João Caruso, e determinou a redação de uma portaria requisitando a Rádio Guaíba para o governo do Estado.
Não adiantaram as ponderações do advogado e presidente do PTB de que não havia cobertura legal para tal iniciativa. Na mesma hora, saiu do elevador o secretário da Fazenda, Gabriel Obino. Era quem Brizola precisava para levar a determinação. Amigo do proprietário da Caldas Júnior, Breno Caldas, Obino foi designado interventor.
A madrugada de domingo tinha sido de tensão. No dia anterior, o marechal Henrique Teixeira Lott — candidato à Presidência derrotado por Jânio Quadros na eleição de 1960 — havia lançado um manifesto contra a tentativa de golpe dos ministros militares e imediatamente caíra preso no Rio.
O manifesto foi colocado no ar pelas rádios Gaúcha e Farroupilha. Não demorou para vir a primeira represália contra o movimento liderado por Brizola para garantir a posse de seu cunhado João Goulart na Presidência da República. Os cristais dos transmissores foram confiscados por ordem do chefe do Estado-Maior do 3º Exército, general Antônio Carlos Muricy.
Das rádios com alcance em todo o Estado, a Guaíba era a única que havia se recusado a divulgar o documento. Caldas aceitou entregar os equipamentos, desde que as transmissões fossem feitas de dentro do Piratini. Com a ajuda do engenheiro da Guaíba, Homero Simon, a Rede da Legalidade foi montada nos porões do palácio e entrou no ar pela primeira vez no domingo, às 14h20min, com Brizola denunciando a trama para impedir a posse de Jango.
Voz conhecida dos ouvintes, Lauro Hagemann, o Repórter Esso da Rádio Farroupilha, de repente se viu desempregado. Simpatizante da causa legalista, decidiu oferecer sua voz para a equipe de imprensa do palácio. Foi agarrado com as duas mãos.
— Pela primeira vez o rádio foi utilizado como alavanca popular. Depois da Legalidade, a ideia de um sindicato de radialistas começou a tomar corpo — contou Hagemann à ZH em 2001.
Era para ser um domingo de Gre-Nal. O locutor Armindo Antônio Ranzolin, 22 anos, da Rádio Difusora, há dias não conseguia conter a ansiedade. Seria sua estreia na narração de uma partida entre Grêmio e Internacional. Mas o Rio Grande começava a entrarem clima de guerra. O jogo foi cancelado.
Um comando monta guarda em frente ao estúdio
Noite de sábado, 26 de agosto.
O governo do Estado começa a por em prática uma operação militar contra um possível ataque das tropas federais. Cerca de 15 homens do grupo de choque da Guarda Civil deixam o QG 3 de Outubro, na Rua Riachuelo, e são levados ao Theatro São Pedro, na Praça da Matriz. Lá recebem ordem da cúpula da área de segurança pública: revidar caso o 3º Exército atacasse o Palácio Piratini.
Getúlio Adamatti, 27 anos, ex-cabo do Exército, sabe que ele e seus colegas pouco têm a fazer na hipótese de uma investida militar. Sugere, então, que ninguém reaja, proposta aceita por todos. O grupo passa a noite no primeiro andar do teatro sob clima de tensão. No terraço do prédio são colocados coquetéis molotov. A sede do Tribunal de Justiça também está tomada de policiais.
Manhã de domingo, 27 de agosto. O grupo é levado para a 2ª Delegacia, na Avenida Azenha. Por volta das 11h30min, seis policiais, entre eles novamente Adamatti, são selecionados para nova missão. Deixam o prédio da delegacia, embarcam num caminhão e seguem rumo à Rua Caldas Júnior, no centro de Porto Alegre. Lá recebem ordens para subir até o segundo andar do prédio onde está localizada a Rádio Guaíba. Por cerca de uma hora os policiais armados ficam de prontidão na entrada do estúdio. Enquanto isso o governo do Estado requisita os equipamentos de transmissão da emissora para montar a Rede da Legalidade.
Ouvido por ZH em 2001, Adamatti contou que uma das imagens que ficou em sua memória era do jornalista Mendes Ribeiro olhando surpreso para aqueles homens armados. Mendes, que havia terminado de apresentar o noticiário do meio-dia, diz ao grupo sorrindo:
— Meus amigos, boa sorte que eu já vou.
Comando recorreu a armas dos anos 1930
A Brigada Militar guardou por mais de duas décadas um armamento ignorado pelas autoridades civis. No final de semana após a renúncia do presidente Jânio Quadros, finalmente veio a revelação. O comandante da corporação, Diomário Moojen, reunido com o governador Leonel Brizola, contou que havia no Serviço de Material Bélico da BM fuzis e metralhadoras contrabandeados da Tchecoslováquia pelo general Flores da Cunha quando interventor do Rio Grande do Sul nos anos 1930.
A notícia surgiu como uma dádiva para Brizola, que recém começava a montar uma operação de resistência contra as unidades do Exército, aparentemente fechadas com a posição da cúpula militar de impedir a posse do vice-presidente João Goulart. As comunicações entre o palácio e o QG do 3º Exército haviam cessado desde a última conversa por telefone, ainda na sexta-feira, 25 de agosto, entre Brizola e o general José Machado Lopes, aumentando o clima de incerteza. No diálogo, Machado Lopes deixara clara sua posição de cumpridor das ordens do ministro da Guerra, Odílio Denys.
A carga encomendada pelo general Flores da Cunha na década de 1930 havia entrado em solo gaúcho via Lagoa dos Patos, por caminhos desconhecidos. As condições do armamento eram boas. O problema estava na munição, deteriorada pelos anos. De cada três ou quatro tiros, apenas um disparava. Mas isso não chegou a arrefecer o ânimo de Brizola, que queria mesmo era impressionar o Exército.
A primeira atitude foi pedir permissão ao arcebispo dom Vicente Scherer paraposicionar duas metralhadoras nas torres em construção da Catedral, à direita do palácio. Da Cúria Metropolitana ecoou um rotundo "não". O pedido não passava de mera formalidade. Brizola mandou instalar o armamento do mesmo jeito.
O governador e o arcebispo não se bicavam. Dom Vicente achava o inquilino do palácio um agitador. Durante os 13 dias de tensão, a Cúria foi transformada em abrigo dos dissidentes do movimento legalista. Adversários como Peracchi Barcellos, derrotado por Brizola na eleição para o governo, lá ficaram em vigília.
Do lado esquerdo do palácio funcionava, à época, a Assembleia Legislativa, que ficou desde as primeiras horas da renúncia de Jânio até o desfecho da crise em sessão permanente. A ampla maioria dos deputados estava solidária à causa legalista.
Outros pontos estratégicos, como a Usina do Gasômetro, a rede ferroviária e a Companhia Telefônica, também foram guarnecidos com rolos de arame farpado, sacos de areia e um punhado de brigadianos. Quando o 3º Exército aderiu ao movimento e deslocou tropas para essas áreas, já era tarde. Totalmente coesa, a Brigada Militar estava orientada a não arredar pé em hipótese alguma. Por pouco soldados da BM e federais não se confrontaram.
Pneus e combustível foram requisitados pelo governo. À indústria Taurus foram exigidos 3 mil revólveres, entregues à população nos comitês de alistamento e para a multidão de jornalistas, políticos, funcionários que se encontravam no palácio, já transformado em cidadela da Legalidade. Aulas de manuseio eram dadas na mesma hora, inclusive para mulheres.
O silêncio do 3º Exército levou Brizola a pedir ajuda ao coronel Roberto Riedel Osório, professor da Escola Preparatória de Cadetes e muito ligado ao Piratini. O oficial foi chamado por outro colega, coronel Argemiro de Assis Brasil — que durante a crise foi um dos informantes do palácio dentro do QG — para uma missão: ir até Santiago sondar o general Oromar Osório, comandante da 1ª Divisão de Cavalaria e tio de Roberto. Prontamente o oficial aceitou, voando num teco-teco do Departamento Aeroviário do Estado. Retornou no mesmo dia com a informação de que seu tio não só defendia a posse de Jango como já estava com tropas sobre rodas, rumando para o Paraná.
O recado de Oromar veio com um pedido: de que o governo arranjasse caminhões e 11 trens — para serem deslocados até São Borja, Santiago,São Luiz Gonzaga e Santo Ângelo. A Polícia Civil e a Brigada Militar foram incumbidas de interceptar caminhões nas estradas, retirar as cargas e levá-los em direção às tropas.
De Santa Maria também chegou a notícia de que a poderosa 3ª Divisão de Infantaria, sob o comando do general Pery Bevilaqua, estava pelo cumprimento da Constituição e pela posse de Jango.
A dica de Fidel
Repórter do jornal Última Hora, Flávio Tavares também era correspondente da agência de notícias cubana Prensa Latina. Do Piratini, transmitia em espanhol os acontecimentos do movimento.
O levante armado no sul do Brasil não demorou a chegar aos ouvidos do líder revolucionário cubano Fidel Castro. Num discurso, Fidel fez uma convocação:
— Governador Leonel Brizola, vá para as montanhas!
Desconhecedor da geografia dos pampas, Fidel imaginava que a insurreição capitaneada por Brizola deveria seguir os passos da revolução de Cuba. Foi nas montanhas de Sierra Maestra que Fidel e Che Guevara deram início à guerrilha que destituiu do poder, em 1959, o ditador Fulgencio Batista.
O pronunciamento não foi ao ar pela Rede da Legalidade. O funcionário do palácio João Brusa Neto selecionava as dezenas de mensagens diárias de solidariedade. Com a triagem, evitava que a resistência legalista fosse interpretada como um movimento comunista. Qualquer manifestação que pudesse incitar à desordem e à violência era vetada.
Brizola tinha reservas em relação ao PCB. Na Legalidade, porém, os comunistas foram os principais articuladores da mobilização popular.
Os comitês de resistência, responsáveis pelo recrutamento de voluntários, eram controlados pelo PCB. O comitê central localizava-se na Avenida Borges de Medeiros com Rua Andrade Neves, num pavilhão de exposições conhecido como Mata-Borrão. Para lá convergiam pessoas de todas as idades e profissões. Era comum ver grupos de tradicionalistas pilchados se oferecerem para o combate ou mulheres dispostas a prestar serviços de enfermagem.
General declara apoio à posse de Jango
Ninguém mais se entendia no interior do Palácio Piratini. Era um corre-corre permeado por informações desencontradas. Por volta das 11h do dia 28 deagosto, o governador Leonel Brizola pegou uma metralhadora INA e foi para o estúdio da Rede da Legalidade fazer, de improviso, um apelo dramático.
A poucas quadras dali, no Quartel-General (QG) do 3º Exército, generais e coronéis também haviam passado a madrugada em reunião permanente. O clima era de insubordinação em várias unidades do Exército no Estado. O comandante da Divisão de Cavalaria, de Santiago, general Oromar Osório, já estava rumando para o Paraná em defesa da posse de João Goulart. O comandante da Divisão de Infantaria de Santa Maria, general Pery Bevilaqua, se recusava a cumprir as ordens dos ministros militares de calar Brizola.
Falei com toda a força dos meus pulmões. Era uma emoção eu olhando para aquela luzinha procurando dizer mais e mais coisas.
LEONEL BRIZOLA
Entrevista em 2001
Pouco antes de descer para o estúdio, Brizola soube que Machado Lopes queria uma audiência. O encontro foi marcado para as 11h30min. Informado pelos jornalistas Flávio Alcaraz Gomes e Arlindo Pasqualini de que o general declararia adesão à Legalidade, Brizola preferiu fazer antes o discurso.
O engenheiro Homero Simon disse ao governador que enquanto uma luz vermelha estivesse acesa, sua voz estaria no ar.
— Botei o coração para fora. Falei com toda a força dos meus pulmões. Era uma emoção eu olhando para aquela luzinha procurando dizer mais e mais coisas — relembrou Brizola em entrevista a ZH em 2001.
O governador não descartava a possibilidade de o general sugerir sua renúncia ou tentar prendê-lo. À Brigada Militar, ordenou que cercasse o gabinete tão logo o general entrasse. Assim que ouvisse do general o conselho para entregar o cargo, diria a ele que ordenasse a prisão por telefone, pois ficaria preso no palácio. O comandante chegou e, de imediato, deu apoio à posse constitucional de Jango.
Uma decisão controvertida
A decisão do general José Machado Lopes de defender a posse de João Goulart na Presidência nunca foi bem assimilada pelo Exército. O general quebrou a hierarquia ao descumprir uma ordem do ministro da Guerra, Odílio Denys, para reprimir a resistência liderada por Leonel Brizola.
Às 9h45min do dia 28 de agosto de 1961, Machado Lopes recebeu do general Orlando Geisel, chefe de Gabinete do ministro, um radiograma que determinava agir "com a máxima energia e presteza". Na mensagem, Geisel recomendava empregar inclusive a Aeronáutica para realizar o bombardeio do Piratini se fosse necessário. Machado Lopes respondeu informando que só cumpriria ordens "dentro da Constituição vigente".
Se decidisse cumprir as ordens repassadas por Geisel, Machado Lopes enfrentaria fortes resistências no 3º Exército. Dentro do próprio QG havia divergências entre os oficiais. Coronéis como Luiz Chaves Barlem e Argemiro Assis Brasil — que posteriormente foi chefe da Casa Militar de Jango — eram favoráveis ao movimento de Brizola. Além dos generais Pery Bevilaqua, de Santa Maria, e Oromar Osório, de Santiago, Sílvio Santa Rosa, comandante da 6ª Divisão de Infantaria, em Porto Alegre, também defendeu a posse de Jango.
No livro O 3º Exército na Crise da Renúncia de Jânio Quadros, publicado em 1980, Machado Lopes dá sua versão sobre o episódio de 1961. O general afirma ter preferido ficar ao lado da Constituição. Chama os ministros militares de "obcecados pela ideia de impedir a posse de João Goulart" e "esquecidos de que havia um Congresso encarregado de zelar pela soberania nacional".
O livro reserva a Brizola as mais fortes críticas. É classificado de anjo negro, de ambicioso e de agitador que "buscava alcançar o poder, levando o presidente a cometer desatinos políticos". Em um dos trechos, diz: "Admirador de Fidel Castro, procurava imitá-lo nos gestos e atitudes. Era grotesco vê-lo, no auge da crise, com uma metralhadora portátil numa das mãos e a Constituição na outra".
Em 1964, com o regime militar, Machado Lopes foi para a reserva.
Ordem de última hora evitou confronto na Ilha da Pintada
Com as mãos nos bolsos da japona, semblante tenso e olhar voltado para a Igreja das Dores, o comandante do 3º Exército, general José Machado Lopes, ordenou ao capitão presente a seu gabinete, no Quartel-General (QG) da Rua dos Andradas, o ataque à Ilha da Pintada. Era início da madrugada do dia 28 de agosto de 1961. Objetivo da missão: enfrentar os mais de cem soldados da Brigada Militar que guarneciam o local e confiscar o cristal da torre de transmissão da Rádio Guaíba, equipamento indispensável para a Rede da Legalidade.
O ataque calaria o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Graças a um estúdio improvisado nos porões do Palácio Piratini, com equipamentos requisitados da Guaíba, Brizola vinha mantendo a população mobilizada desde domingo em defesa da posse constitucional de João Goulart na Presidência. Ao ordenar a invasão, Machado Lopes dava um passo decisivo para o confronto militar. A missão cabia aos soldados da Companhia de Guarda, sob o comando do capitão Pedro Américo Leal. O major Álcio da Costa e Silva, responsável pelo seviço de comunicações do QG, ficaria incumbido da retirada do cristal.
Leal já havia argumentado que a ilha estava tomada por soldados da BM. Horas antes, o sargento Eloy Faedrich, o cabo Antônio da Costa Pereira — que era remador — e um tenente tinham feito um reconhecimento da ilha. De barco, disfarçados de pescadores, os três viram que uma investida resultaria em mortes. Os brigadianos estavam preparados para a luta.
— Capitão, cumpra suas ordens — disse o general.
O capitão já estava no elevador e ainda voltou:
— General, não quero ordem por escrito, mas vai haver baixas na operação, não sei quantas. Vamos atacar uma tropa de muita tradição.
— Capitão, cumpra suas ordens.
Leal deixou o gabinete e rumou para a sede da companhia, na Rua Vieira de Castro. Lá determinou a preparação da tropa. Em três minutos os pelotões estavam em forma no pátio. Havia divergências no grupo. Alguns achavam a investida uma loucura.
Eram 3h quando o capitão Leal recebeu um telefonema do ajudante de ordens do comandante do Estado Maior do Exército, general Antônio Carlos Muricy, para suspender o ataque. Leal recusou ordens por telefone. Não demorou para o oficial chegar até a Companhia de Guarda e repassar pessoalmente a contra-ordem. No final da manhã do dia 28, Machado Lopes declarava seu apoio à causa legalista de Brizola.
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