O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), base da Universidade Federal do Rio Grande (Furg) para a cassação do título de doutor honoris causa do almirante de esquadra Maximiano da Fonseca, traz detalhes e depoimentos sobre como funcionaram os navios transformados temporariamente em prisões políticas em 1964.
As destituições das honrarias foram aprovadas pelo Conselho Universitário da Furg no dia 5 de abril, sob a justificativa de envolvimento de militares em “graves violações aos direitos humanos” no período da ditadura militar. Além de Maximiano, ministro da Marinha do Brasil entre março de 1979 e março de 1984, perderam as condecorações o ex-presidente Emílio Garrastazu Médici e o general Golbery do Couto e Silva, que foi ministro da Casa Civil.
A iniciativa da Furg de cassar o título de Maximiano, falecido em abril de 1998, é a que causou mais reações contrárias. Não apenas forças políticas e empresariais de Rio Grande manifestaram descontentamento e pediram revisão do ato, mas o atual comandante da Marinha do Brasil, almirante de esquadra Marcos Sampaio Olsen, também oficiou a universidade para repudiar o ato.
Maximiano, como oficial da Marinha, teve estreita relação com a pesquisa científica marítima. Isso o levou a estabelecer parcerias com a Furg, instituição prestigiada pelos estudos oceânicos. Em 1963, Maximiano assumiu o comando do navio Canopus e concluiu levantamento hidrográfico da costa do Rio Grande do Sul. Ele também foi o idealizador do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), que contou com a participação de pesquisadores da Furg. Em junho de 1984, a universidade concedeu o título de doutor honoris causa ao almirante.
Quarenta anos depois, a revogação foi baseada, em substancial parte, no primeiro volume do relatório final da CNV, no capítulo que versa sobre os navios convertidos em prisões.
Um deles era o Canopus, atracado no porto de Rio Grande, comandado à época da ruptura institucional por Maximiano. O mesmo navio que serviu à ciência acabou convertido em centro de detenção abusiva.
O documento diz que o Canopus era um navio de pesquisa que teve sua função “alterada” entre “fevereiro e abril de 1964”, abarcando curto período antes e depois do golpe civil-militar, consumado em 1º de abril daquele ano. A embarcação, diz a conclusão da CNV, teve 22 presos políticos — um militar e os demais civis. Detentos como parlamentares eram conduzidos aos camarotes. Os demais eram encaminhados à enfermaria e ao porão. O documento diz que, no dia 25 de abril de 1964, o Canopus deixou o porto de Rio Grande e os prisioneiros foram transferidos ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) de Porto Alegre e ao navio Princesa Leopoldina, no Rio de Janeiro.
O relatório traz depoimento do portuário Antônio Nailen Espíndola, um dos presos políticos do Canopus.
“Nos colocaram numa camarita no navio que ficava abaixo do nível do mar, quer dizer, nós não tínhamos ar direto para respirar, respirávamos através de um exaustor. Eles ligavam o exaustor e descia o ar por um cano e subia por outro, para renovar o ar dentro da camarita. Ali nós ficamos em torno de 15 a 18 dias. Tínhamos direito a meia hora de sol a cada 72 horas. Só”, relatou o ex-detento.
Ele narrou ter sido preso após chegar ao porto no dia 6 de abril de 1964 para fazer a distribuição de trabalho.
O documento da CNV não individualiza condutas específicas nos navios. Ele traz relatos gerais sobre violações de direitos humanos perpetradas. É destacado que transformar os navios em penitenciárias era uma decisão do comando-maior da força. A conclusão da CNV foi de que a existência do cárcere marítimo era de conhecimento da cúpula da ditadura militar. Na página 850, Maximiano é listado como um dos responsáveis.
Uso de navios como prisões políticas
O Canopus não foi o único navio adaptado para servir de prisão logo nos primeiros dias da ditadura militar. O relatório menciona outras cinco embarcações: Raul Soares, Custódio de Mello, Princesa Leopoldina, Bracuí e Guaporé.
A CNV registrou que “foram identificados casos de tortura física”, com “destaque” para os navios Raul Soares, ancorado em Santos, e o Canopus, em Rio Grande.
É relatado que os porões eram divididos em pequenas celas e os camarotes, em alguns casos, também serviam de celas individuais.
“Outros pontos, como a área onde a água da caldeira era fervida, o frigorífico e o local de despejo de fezes, também chegaram a ser utilizados como solitárias ou como locais de punição para presos”, diz o documento.
A CNV destacou que as prisões em navios aconteceram apenas no primeiro ano da ditadura militar, sobretudo em abril de 1964, logo após a consumação do golpe. Algumas hipóteses são listadas para esse tipo de adequação de finalidade. Uma delas era a superlotação dos cárceres tradicionais. Outra: o difícil acesso a familiares, advogados e imprensa. Era necessário usar lanchas ou barcos para chegar aos navios. A CNV entendeu que as embarcações impunham a incomunicabilidade e o isolamento como “principais características” das prisões no mar. Um terceiro motivo era a possível realização de detenções do interesse da Marinha, dado o contexto da força naquele período.
“Parte significativa dos presos era ligada a atividades costeiras, como líderes sindicais dos trabalhadores portuários, além de militares da Aeronáutica e da Marinha. (...) No período anterior ao golpe de 1964, a Marinha passava por turbulências internas e há possibilidade de que os navios prisões tenham sido utilizados por essa força armada para prender militares perseguidos”, registrou a CNV.
O documento em que a Furg colheu elementos para a cassação do título de doutor honoris causa de Maximiano tem pelo menos uma menção a “tratamento digno” no cárcere do navio Princesa Leopoldina, mas predominam os relatos de condições precárias no contexto geral das embarcações convertidas em presídios.
“Algumas celas eram invadidas pela água do mar, e em algumas a água chegava até o joelho. Havia infestação de insetos, o chão era frio e úmido, e não havia coberta. Vários relatos ressaltam o frio que os presos sentiam”, diz trecho do relatório final.
A Furg, ao justificar a cassação dos títulos de doutor honoris causa, afirma que, após a CNV, passou a ser questionada pelo Ministério Público Federal (MPF) sobre a distribuição de honrarias a militares eventualmente implicados em violações de direitos humanos.