Em 2018, o general gaúcho Carlos Alberto dos Santos Cruz alinhou seu prestígio à candidatura do capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro à Presidência da República. Além da origem militar, os dois tinham em comum a bandeira do antipetismo, calcado em um discurso de denúncia contra a corrupção.
Santos Cruz virou ministro e logo percebeu que o clientelismo continuava a vigorar no novo governo. Foi demitido após recusar indicações políticas de afilhados de Bolsonaro. Mesmo sendo um raro general com experiência real de combate (seu helicóptero foi metralhado no Congo e ele sobreviveu a bombardeios), sofreu perseguições nas redes sociais. Foi enxovalhado e chamado de traidor pelos bolsonaristas.
Parte dessa vivência é descrita no recém-lançado livro Democracia na Prática – Por um Brasil Melhor. Na obra, Santos Cruz descreve o bolsonarismo como “uma enganação eleitoral que enfraqueceu as bases democráticas do Brasil”. Nesta entrevista, ele analisa os últimos acontecimentos políticos no país.
Como o senhor interpreta a radicalização recente no país, incluindo a tentativa de explosão de bombas, a derrubada de torres de energia, a queima de prédios policiais e o vandalismo nas sedes dos três poderes?
Esse é o resultado de um processo longo de fanatização política. O fanatismo sempre leva à violência, à intolerância, a atitudes irracionais. O que vemos é o desfecho natural do fanatismo político. E já vem sendo alertado há tempo. Para mim, não é surpresa.
Quais os principais fatores que levaram ao radicalismo?
O comportamento político, desde longo tempo, a partir da divisão social. Esse maniqueísmo político, que começou faz muito tempo, com a divisão entre coxinhas e mortadelas, brancos e pretos, nordestinos e sulistas etc. Todas essas ideias descabidas contribuíram para a divisão de grupos na sociedade. Isso foi agravado com o comportamento político do governo Bolsonaro, composto por extremistas ideológicos e uma verdadeira indústria de desinformação, ou fake news, com influência na manipulação da opinião pública.
Ocorreu alguma falha do novo ministro da Defesa, José Múcio? Como o senhor vê a atuação do governo que saiu e do que entrou em relação aos acampamentos bolsonaristas e a violência que geraram?
A radicalização dos acampados às portas dos quartéis não têm nada a ver com o novo ministro da Defesa, José Múcio. Os acampamentos e a radicalização são muito anteriores à escolha dele como ministro; foram estabelecidos logo após o segundo turno das eleições, no início de novembro. O presidente que saiu não foi honesto com as pessoas que estavam na frente dos quartéis. Ele tinha a obrigação de se manifestar sobre o assunto. É obrigação do presidente se manifestar sobre as questões nacionais. Tinha que esclarecer que as expectativas dessas pessoas eram irreais, que o melhor caminho era a organização de uma oposição construtiva e fiscalizadora, que é fundamental para a democracia. Um dos acontecimentos mais covardes a que se viu e se vê é a transferência de responsabilidade da solução de uma questão política, que é obrigação dos políticos, para as Forças Armadas. A solução de problema político é política, e não militar. Isso foi uma desonestidade e uma covardia.
O senhor saiu da aposentadoria para atuar na política. Foi secretário nacional de Segurança Pública no governo Michel Temer, depois foi ministro da Secretaria de Governo na gestão Bolsonaro, mais tarde ingressou em um partido político, o Podemos, embora não tenha sido candidato. Como avalia essa trajetória política?
Na Secretaria Nacional de Segurança Pública, o trabalho era muito mais técnico do que político. Depois veio o convite para ser ministro. Essas funções são sempre muito trabalhosas, e a única motivação foi fazer um relacionamento político respeitoso e de qualidade com governadores, prefeitos, deputados, senadores, partidos políticos, organizações civis. Da mesma forma, a filiação ao Podemos foi para poder participar mais da vida nacional. Hoje avalio que fiz o melhor que podia em todas as funções e atividades. Decepções tenho só com pessoas – o que também não é nada novo quando se tem algum tempo de vida.
Em termos de ideologia, o senhor se define mais à direita ou à esquerda?
Não gosto dessa divisão. Acho que são termos já ultrapassados, que não definem nada sobre qualidade de propostas e de ações. Eu me posiciono sobre os assuntos que considero relevantes para o Brasil: redução da desigualdade social; luta contra a corrupção; dignidade e respeito às pessoas, funções e instituições; eliminação de privilégios; o absurdo do fanatismo político, da manipulação da opinião pública, através de uma indústria criminosa de fake news; transparência absoluta nos gastos públicos; Justiça, ensino, trabalho, saúde, alimentação, habitação. A democracia tem princípios, que são inegociáveis, como liberdade de expressão, igualdade perante a lei, eleições periódicas e revezamento de poder. Não componho bloco de nenhum extremismo, pois penso que são todos iguais.
Bolsonaro desgastou a direita de modo contundente. E a esquerda também se desgastou com populismo e escândalos na administração pública. Espero que o novo governo não dê chances para extremistas e populistas.
Quais as principais falhas da direita que governava o país até um mês atrás e da esquerda que governou por 14 anos e volta em uma coalisão?
O Brasil não estava governado pela direita, mas, isso sim, por um populista. Bolsonaro desgastou a direita de modo contundente. E a esquerda também se desgastou com populismo e escândalos na administração pública. Espero que o novo governo não pratique nem dê chances para discursos extremistas e populistas e governe com foco no que é importante para o Brasil, dentro dos princípios democráticos de transparência absoluta, diálogo e debate, união nacional, respeito à legislação, aperfeiçoamento das instituições e divisão dos poderes.
No seu livro, o senhor fala que, em 2018, o país foi “vítima de uma enganação eleitoral” que apenas enfraqueceu as bases democráticas. Explique melhor seu desencanto, por favor.
Em 2018, os antigos governos do PT estavam desgastados por escândalos financeiros e existia um forte sentimento anti-PT – de responsabilidade do próprio PT. Isso possibilitou a eleição de Bolsonaro, que prometeu combate à corrupção e fazer uma nova política – apesar de não ter definido como seria. Mas seu comportamento foi de um extremista. Um pequeno grupo de radicais influenciou-o na implementação de manifestações de desrespeito, do tal toma-lá-dá-cá – mais intenso do que nunca –, da indústria de fake news. Não mudei minha posição sobre como tratar a política e a administração pública. Mas me tornei incompatível para a função nesse contexto.
O senhor chegou a ser sondado para se reconciliar com Bolsonaro?
Nunca. Não teria cabimento qualquer consideração nesse sentido.
E aceitaria algum cargo no governo Lula, se fosse convidado?
Em primeiro lugar, eu nunca fui convidado e, portanto, nunca pensei sobre isso. Se fosse, eu iria fazer uma análise sobre a função e as possibilidades de contribuir da melhor forma para o Brasil.
O senhor foi apoiador do ex-juiz Sergio Moro e da Lava-Jato. Permanece convicto a respeito do trabalho dele ou faz reparos a sua atuação?
Na época, o que eu fiz, assim como grande parte dos brasileiros, foi apoiar o combate à corrupção, aos desvios e à má aplicação do dinheiro público. E continuo apoiando isso tudo, assim como a absoluta transparência nos gastos públicos, independentemente do governo. Sobre o andamento processual, as decisões do Judiciário em todas as instâncias, a minha percepção é como cidadão sem qualquer especialização na área do Direito: há a sensação de que a Justiça precisa melhorar o funcionamento para não haver demora excessiva nas decisões, não só com relação aos problemas acontecidos nas áreas da política e da administração pública, mas também em relação aos crimes comuns.
O senhor foi militar a vida inteira. Inclusive, após ir para a reserva, continuou em missões militares, no Congo e em dezenas de países. Nesses locais, é comum o militar deixar a farda e ingressar na política, como tem ocorrido no Brasil?
Em qualquer país, é normal as pessoas ingressarem na política após o encerramento de suas atividades profissionais, ou mesmo ainda durante a sua vida profissional. É claro que, neste último caso, encerram sua participação no serviço público, se for o caso. A adaptação da profissão anterior para a vida no mundo político depende das características individuais. Os valores são os mesmos para qualquer profissão, incluindo a militar, e as atividades na política ou prestação de serviço público: honestidade, transparência, legalidade, educação, justiça etc.
O senhor foi comandante da Missão de Paz no Haiti, chefe da Missão de Paz no Congo e ajudou na formação de Peace-Keepers das Nações Unidas em dezenas de países. O que colhe dessas experiências nesses locais?
Tive a oportunidade de comandar tropas de dezenas de países no Haiti e na República Democrática do Congo e participar de outras atividades em cerca de 40 países, como Bangladesh, Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia e Etiópia. O que fica de conclusão é que todas as pessoas têm as mesmas necessidades e expectativas. Todas querem, merecem e têm direito a respeito, justiça, dignidade, educação, oportunidades, saúde, alimentação e água, moradia e trabalho.
Por fim, gostaria de deixar algum recado aos brasileiros?
Eu penso que o Brasil precisa recuperar o respeito pessoal, funcional e institucional. O fanatismo político precisa ser combatido, pois sempre acaba em desentendimento e violência. Não há outro desfecho. Nas áreas da política e da administração pública, o combate à corrupção deve ser feito de todas as formas, pelos órgãos de controle e fiscalização e também pela sociedade, que precisa se estruturar melhor para isso. Esse combate pode ser realizado em grande parte pela transparência, que deve ser praticada e exigida de modo absoluto. É imperiosa a eliminação de privilégios e a redução da imoral desigualdade social no Brasil. A constante busca do aperfeiçoamento das instituições é a essência da democracia e da evolução da dinâmica social. Além disso, preservando a total liberdade de expressão, é fundamental ao Brasil aplicar a lei em todas as situações, incluindo a desinformação, a verdadeira indústria criminosa de comunicação que se instalou no Brasil para a manipulação da opinião pública. Isso não deixa o Brasil ter a paz social que permite o entendimento necessário para o desenvolvimento. Penso que o Brasil precisa colocar o foco nesses pontos.