Um dia depois da votação em que a Assembleia aprovou o projeto do ICMS, que evitará a perda de R$ 2,8 bilhões em receitas em 2021, na terça-feira (22), o governador Eduardo Leite conversou por uma hora com GZH sobre as dificuldades de 2020 e os desafios dos próximos anos.
Um deles, o aumento dos gastos com educação, para cumprir a nova Lei do Fundeb, que exigirá mais R$ 3 bilhões anuais. O governador alertou que o problema financeiro do Estado não está resolvido e confirmou que já em fevereiro deve recolocar em discussão o tema da reforma tributária.
Na metade da entrevista, por videoconferência, Leite fez breve interrupção para acalmar a mascote Chica, que se alvoroçou ao ouvir os latidos de Bento, o outro cão que vive com ele no Palácio Piratini. A seguir a síntese da entrevista.
O ano foi desafiador sob todos os pontos de vista para os gestores públicos. Para o senhor, qual foi o momento mais crucial?
Os primeiros movimentos da pandemia foram especialmente sensíveis, porque passamos a lidar com algo desconhecido. No início, a própria população, observando o que estava acontecendo na Itália, começou um grande movimento de paralisação, antes mesmo que o governo agisse. Reuni minha equipe e disse: se nós não estabelecermos as restrições, vamos perder a autoridade para conduzir o processo. Naquele momento, fui inclusive pressionado por empresários a fazer paralisações. Lembro de ter dito: olha, parar sem ter um plano? Como a gente retoma depois? A partir daí, criamos o modelo de distanciamento controlado, que foi algo inédito, inovador no país.
E qual foi o melhor momento de 2020 ou o que o senhor diria “isto salvou meu ano”?
A gente conseguiu colocar os salários dos servidores em dia em novembro. Também teve o leilão da RS-287, com excelente resultado (em dezembro), e, é claro, aprovamos as reformas estruturais mais profundas das últimas décadas.
O senhor citou o pagamento dos servidores em dia, mas e agora? Com a prorrogação das atuais alíquotas de ICMS por um ano, eles podem dormir tranquilos ou há temor de novos atrasos?
A situação ainda é muito frágil e temos um cenário de grandes incertezas do ponto de vista macroeconômico. Em setembro, outubro e novembro, tivemos um desempenho melhor da receita. Em dezembro, a arrecadação já está abaixo do esperado. Não sabemos como será 2021, mas, seguramente, o Rio Grande do Sul avançou. A perspectiva, eu diria, é positiva. A gente espera que haja a sanção do acordo da Lei Kandir (para compensar perdas com exportações) e que assim a gente possa quitar dezembro sem problemas. O Estado opera no fio da navalha. Ainda é deficitário, mesmo com a manutenção das alíquotas de ICMS.
Em julho, o senhor apresentou reforma tributária ousada, que não foi entendida na Assembleia. Agora, aprovou esse remendo, que só resolve o problema de 2021. O que podemos esperar no próximo ano? O senhor vai propor nova prorrogação de alíquotas ou quer reforma mais completa?
Me sinto tranquilo por ter feito aquilo que me propus: prorrogar por dois anos (as alíquotas majoradas) para apresentar uma proposta de reforma. A gente cumpriu essa agenda. Estávamos formatando a estratégia, quando, em março, teve o primeiro caso confirmado de coronavírus no Estado, e isso mudou o cenário. Deixamos de apresentar a reforma naquele momento e retomamos em julho. Aí já havia o cenário das eleições e a pandemia, o que tornou o ambiente ruim. Mesmo assim, tentamos. Para evitar um mal maior, que seria a rejeição, retiramos a proposta e passamos, depois da eleição, a discutir ainda uma reforma, que, mesmo que se possa adjetivar como remendo, avançou bastante em pontos importantes.
Passamos, depois da eleição, a discutir ainda uma reforma (tributária), que, mesmo que se possa adjetivar como remendo, avançou bastante em pontos importantes.
Como o senhor avalia o papel da Assembleia Legislativa?
Considero que a Assembleia teve atitude responsável, inclusive da oposição. PT e PSOL mostraram responsabilidade ao dialogar, e essa é uma vitória da boa política em tempos de tantos radicalismos que a gente vive na política nacional, em que um campo busca destruir outro. Defendo a sensatez, o debate focado nas ideias. Se em alguma medida disseram que foi uma derrota, em outra medida foi uma vitória. Mas, repito, o problema do Estado é estrutural e vai exigir que no ano que vem conversemos de novo sobre isso.
A conversa começará quando?
Vamos começar a esboçar estratégia de discussão já em fevereiro, com o retorno do ano legislativo. Esperemos que o ambiente político seja pouco melhor. A gente vai ter de começar uma conversa que dê a todos a noção da consequência do que a gente vai fazer. Se tiver tudo jogando a favor, com a economia indo bem e com privatizações com bom valor, até posso ter alguma reserva que me ajudaria a empurrar o problema até 2023, mas as receitas das privatizações acabariam consumidas e deixariam de ser aproveitadas em investimentos. Não é sobre resolver apenas o meu governo. Fatalmente, não haverá saída para o próximo governo.
A partir de janeiro, o Estado não poderá mais contabilizar o pagamento de aposentados como aplicação em educação. Com isso, terá de ampliar em R$ 3,2 bilhões os aportes para atingir o investimento mínimo obrigatório na área. Como vai resolver isso?
Não é problema só do Estado. É das prefeituras também. Em Porto Alegre serão R$ 300 milhões a mais. No Estado, a Procuradoria-Geral está trabalhando para sustentar teses jurídicas para tentar evitar que tenhamos de pagar esses R$ 3,2 bilhões de uma vez.
O governo irá à Justiça?
Vamos buscar o Tribunal de Contas e, se necessário, sim, judicialmente. Em não prosperando, temos de tentar partir para modulação dos efeitos. Exigir que o Estado, de ano a outro, aporte mais R$ 3 bilhões em educação é absolutamente inviável. Talvez tenhamos de fazer modulação em 10 anos para integralizar os R$ 3 bilhões.
As escolas tiveram imensas dificuldades na pandemia e para boa parte dos alunos foi ano perdido. Como recuperar em 2021?
Certamente levará tempo para que haja imunização em massa da população, e é por isso que temos defendido as aulas no modelo híbrido, reconhecendo que a situação demanda cuidados. Então, não fugirá muito de termos, no início do ano que vem, esse modelo híbrido, com turmas reduzidas, com intervalos alternados, para ter retomada que possa se afirmar diante dos municípios. Enfrentamos resistência, mas tenho insistido: as crianças não foram postas numa geladeira para lá ficarem até acabar a pandemia. Se elas não estão sendo formadas, possivelmente estão sendo deformadas, porque estão crescendo e, se não recebem estímulo, estão sendo influenciadas por outras coisas. A gente pode estar perdendo uma geração.
O senhor pode dar mais detalhes sobre essa ideia de sistema híbrido?
A gente adquiriu Chrome books, notebooks, distribuídos para os professores, compramos pacotes de dados (de internet) para os alunos, pretendemos fazer novas compras de Chrome books no ano que vem para uso dos estudantes. Não é para distribuir a todos os alunos, mas para ter disponibilidade de uso pelos alunos na escola, no modelo híbrido. Contratamos novas plataformas de ensino, como Árvore dos Livros, Elefante Letrado, e outras de ensino de matemática, enfim. Aproveitando esse momento para forçar essa migração ao digital, que é algo que vai ficar de legado para a educação. A gente insiste nesse momento híbrido e vai ser o caminho que vamos trilhar na volta às aulas até que haja segurança para retorno do sistema que se tinha antes.
Mesmo com a pandemia piorando, o senhor cedeu a pressões e flexibilizou o modelo de distanciamento, autorizando os prefeitos a adotarem medidas mais brandas. Por quê?
Passado o período do inverno, a gente migrou para o modelo de cogestão, porque estávamos reduzindo os contágios, e entendo que houve aprendizado de todos os prefeitos e agentes públicos. No final da primeira quinzena de novembro, começaram a subir novamente as internações, até que chamei os prefeitos e disse: vamos suspender a cogestão por duas semanas para alertar as pessoas. Os prefeitos compreenderam. Fizemos duas semanas de resistência e depois voltou a cogestão. É preciso que haja acerto regionalmente (latidos de cachorros que convivem com o governador no Piratini interrompem momentaneamente a conversa. O governador sorri e se desculpa pela pausa). Os municípios tiveram de formar seus gabinetes de crise para a cogestão. Não é: “prefeitos, podem fazer o que vocês querem”. Eles têm de se reunir e ajustar entre eles. O Rio Grande do Sul tem uma região que depende mais do turismo, outra que tem outro tipo de vocação, eventualmente os protocolos podem ser ajustados. Muitos prefeitos são mais restritivos do que o Estado demanda ser. E outros eventualmente precisam de redução de restrições, dependendo da realidade local. Então, isso foi para evitar injustiças. Porque há uma imposição de regras que afetam a vida das pessoas. Saúde não é só não ter coronavírus, há outras questões, problemas de depressão, pessoas que deixam de cuidar de outros problemas de saúde. Entendo que o Estado cumpre a sua parte: tem modelo com 11 indicadores, dá o alerta do nível de risco, apresenta protocolos. Mas a população confiou nesses prefeitos e eu confio também. Mas não significa um “libera geral”. Eles têm de cumprir regras mínimas.
O prefeito eleito de Porto Alegre, Sebastião Melo, quer classificação própria para a Capital, porque se comprometeu com a abertura das atividades. Existe essa possibilidade?
Nos parece fazer pouco sentido, mas estamos abertos a dialogar.
Há ansiedade em relação à vacina contra o coronavírus. Se o Ministério da Saúde não liderar o processo ou se demorar, o senhor se compromete a promover a vacinação no RS?
Tenho confiança e expectativa, pelo que conversei com o ministro da Saúde em reuniões e com o próprio presidente, de que será fornecida a vacina.
Tenho confiança e expectativa, pelo que conversei com o ministro da Saúde em reuniões e com o próprio presidente, de que será fornecida a vacina. Insisto, não há razão que explique que um país com programa de imunização com mais de 50 anos de história deixe que cada um faça por si. Agora, é claro, dadas as declarações feitas, o desestímulo à vacinação pelo presidente, fizemos nossos próprios contatos para viabilizar, se for o caso, a aquisição direta de vacinas, mas aposto numa campanha nacional liderada pelo Ministério da Saúde. Do contrário, seria ocorrência grave.
Tem um prazo que o senhor se dê, se a vacina não vier, para definir a compra?
O mês de janeiro certamente será determinante para que a gente tenha confirmada essa expectativa junto ao Ministério da Saúde, com o anúncio de cronograma com datas definidas e a logística organizada. Considero, talvez, as duas primeiras semanas de janeiro definidoras da estratégia.
Considerando a oferta que as universidades estão fazendo, de colocar superfreezers à disposição, o senhor pretende fazer a intermediação com o Ministério da Saúde para poder receber as vacinas da Pfizer aqui?
A Secretaria Estadual da Saúde já faz esse levantamento e essa organização. E o que parece adequado é exatamente isso, que, nas regiões metropolitanas e nas grandes cidades, seja usada essa vacina, se houver disponibilidade, por conta da melhor capacidade de armazenamento e logística.
O senhor está chegando à metade do mandato. Já disse que não será candidato à reeleição, mas para concorrer a outro cargo precisa renunciar nove meses antes do fim. Qual é o seu projeto político? Cogita ser candidato à Presidência?
Dentro da carreira política e para quem gosta do poder Executivo, e eu gosto e me sinto realizado e vocacionado, gosto da análise de dados, gestão, e estudei para isso, me sinto útil assim, naturalmente, a Presidência da República seria, depois de prefeito e governador, algo que poderia, eventualmente, estar nesse caminho. Mas tenho perfeitamente claro que Presidência é destino. Tantas pessoas se preparam tanto para ser e não foram e tantas outras não se preparam em absoluto e acabaram sendo. O próprio presidente Fernando Henrique Cardoso, pelas suas qualidades pessoais, que são muitas, e pela capacidade intelectual, por si só isso não faria dele presidente.
A circunstância dele ser ministro da Fazenda, no momento em que se viabilizou um plano que debelou a inflação, mudou completamente o cenário a pouco tempo do processo eleitoral de 1994.
A dinâmica da política torna tudo isso muito mutável.
Há um grupo de brasileiros que pensam, inclusive o próprio presidente Fernando Henrique entre eles, que é preciso investir em um projeto de centro para quebrar essa polarização. O senhor vai trabalhar por isso?
Sim, concordo. E me considero político de centro. Ser de centro não significa ausência de posição. As reformas históricas que conseguimos fazer aqui foram construídas com base em diálogo e muita ação, sem agredir ninguém, sem passar por cima de ninguém. Fui nos sindicatos, recebi os sindicatos. Trocamos ideias e impressões. Houve espaço para o contraditório. Esse é o caminho. É possível fazer mudanças profundas e o país precisa de mudanças profundas. Com respeito e participação de mais pessoas. É para isso que vou trabalhar. É verdade que tenho sido procurado por pessoas que entendem que eu possa ser alternativa, um nome que possa ajudar a conduzir isso. Estou com 35 anos, completarei 36 em março, e é grande honra, sinal de reconhecimento. Dá ao Rio Grande do Sul a oportunidade de participar desse debate. E há certos Estados na política nacional, não que haja exclusividade desses Estados, mas uma tradição de que desses se espere futuros candidatos. E o Rio Grande do Sul é um desses Estados de onde se tem expectativa de que possa vir um candidato à Presidência.
O que quero é ajudar o país a ter caminho sereno, com muita ação e capacidade de gestão para fazer reformas que o país precisa. Agora, um compromisso eu tenho muito forte: não concorrerei à reeleição como governador.
E o senhor pode ser um desses candidatos?
Como candidato? É muito cedo, absolutamente prematuro, para dizer. Participo das discussões, quero ajudar a construir alternativa e naturalmente não descartaria participar como candidato, mas não é o que me move no trabalho no Estado, porque sei que a definição de um nome se dará dentro das circunstâncias que estaremos vivendo em 2022. Tem todo um ano de pandemia que pode mudar completamente o contexto. Pode reforçar meu nome como alternativa ou que se encaminhe para outra solução.
Que outros nomes poderiam liberar esse processo?
Naturalmente, os nomes com quem mais tenho conversado neste momento são do governador de São Paulo, João Doria, e do Luciano Huck, que tem feito uma mobilização de pessoas para pensar uma alternativa para o país. Ele é uma, mas parece ter bastante humildade em ser alguém que ajuda a construir e não se impõe como nome. São os que mais tenho conversado sobre isso. Mas é um assunto que está numa ordem de prioridade muito abaixo do que tenho para resolver no Rio Grande do Sul: ICMS, pandemia, privatizações. As pessoas brincam, às vezes, que se eu resolver o problema do Rio Grande do Sul, viraria presidente. Eu respondo: “Não, se eu resolver, viro papa” (risos). Não tenho expectativa de resolver tudo, mas temos dado encaminhamento positivo em um agenda de pelo menos seis anos, desde que o governador (José Ivo) Sartori deu grande colaboração, com reformas estruturantes. Nos enfrentamos no segundo turno (em 2018), é verdade, e, num processo eleitoral, pequenas diferenças se acentuam. Mas considero que Sartori deu passos importantes para o Estado. E espero que a gente possa ter uma sequência dessa agenda no Rio Grande do Sul.