Na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, os três andares de estacionamento reservado aos deputados não abrigam apenas os veículos dos 55 parlamentares. Quase metade das vagas se transformou em depósito de materiais gráficos dos gabinetes. No local, milhares de caixas de papelão – a maioria com a logomarca da Companhia Rio Grandense de Artes Gráficas (Corag) – guardam panfletos, cartilhas, boletins informativos, cópias de estatutos, relatórios de comissões especiais e até material de campanha.
Em meio às pilhas, a reportagem flagrou, na semana passada, claros exemplos de desperdício de dinheiro público. Políticos que não ocupam mais cadeira no Legislativo deixaram para trás maços de impressos que deveriam servir para divulgar atividades relacionadas ao mandato. Havia também quantidade significativa de boletins informativos dos gabinetes que não têm mais condições de ser distribuído, seja pela deterioração ou pela defasagem. Em caixotes abertos ou esparramadas pelo chão, peças produzidas entre 2011 e 2016 que nunca ganharam destino.
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Também estão armazenados na garagem publicações do Legislativo e do Executivo, que, assim como os boletins de deputados, exibem na capa o selo de "Mala Direta Básica", ou seja: embora já tenha sido pago, o envio pelos Correios não foi efetivado.
Há mais de um ano, parlamentares guardam caixas com centenas de exemplares da primeira edição da revista Parlamento, de outubro de 2015, e do Jornal Piratini, de novembro daquele ano. "O Rio Grande do Sul vive uma situação de emergência financeira, que exige atitude. Sem isso, os recursos continuarão insuficientes para atendimento pleno de áreas essenciais, como saúde, educação e segurança, e para investimentos em projetos de desenvolvimento econômico e social", diz trecho da seção Carta ao Cidadão, do boletim estadual.
Para custeio anual, gabinetes têm verba de R$ 2,14 milhões
Desde 2006, a Assembleia Legislativa gastou R$ 27,7 milhões com serviços dos Correios, em valores já corrigidos pela inflação. Após o escândalo dos selos – esquema de desvio de recursos por meio da compra irregular de selos postais dos Correios –, em 2007, esse custo vem diminuindo, mas, na série histórica, é possível observar que volta a crescer em anos pré-eleitorais, como 2009 e 2013. Principal fornecedora do Legislativo, a Corag recebeu R$ 25,4 milhões nos últimos 10 anos, em valores atualizados, referentes à impressão de materiais institucionais e solicitados pelos parlamentares. No ano passado, foram R$ 1,45 milhão – 58% a menos que o desembolsado em 2006.
Cada um dos 55 gabinetes, além de comissões e bancadas, tem direito à cota básica. São R$ 14,8 mil por mês – R$ 2,14 milhões por ano – que os deputados recebem para custear despesas com material de expediente, telefone, postagens e serviços gráficos.
De acordo com a resolução 419/2001, que trata da utilização dessa cota, as atividades dos parlamentares poderão ser divulgadas por meio de impressos. A norma determina que o material de divulgação – cuja utilização é de responsabilidade dos gabinetes e bancadas – tenha "caráter de prestação de contas da atividade parlamentar ou conteúdo institucional ou administrativo relativo à Assembleia Legislativa".
Resposta do legislativo só via Lei de Acesso à Informação, em até 20 dias
Nos dois dias em que ZH circulou pelo estacionamento, foram identificados materiais que deixam dúvidas sobre o cumprimento dessa determinação.
É praxe entre deputados, por exemplo, imprimir cópias dos estatutos do Idoso e da Criança e do Adolescente (ECA), com suas logomarcas no verso. São duas legislações federais disponíveis na internet. Devido às eleições de 2016, parlamentares também publicaram cartilhas com orientações para candidatos.
Procurada, a assessoria de imprensa da Assembleia se recusou a responder questionamentos de ZH e sugeriu que as perguntas fossem encaminhadas pela Lei de Acesso à Informação, cujo prazo para resposta é de 20 dias. O Palácio Piratini afirmou que os informativos do governo do Estado encontrados no estacionamento "são distribuídos para os deputados, inclusive por demanda deles" e que, após o repasse, o "governo não acompanha a sua destinação".
RECORTES DA PAPELADA
Relatórios empoeirados
Dezenas de cópias de relatórios finais de comissões acumulam pó na vaga do deputado Frederico Antunes (PP). O parlamentar presidiu as comissões especiais dos Precatórios em 2011 e da Aviação Civil Regional em 2015. Os documentos – cada um com cerca de 200 páginas – são resultado de quatro meses de trabalho dos dois órgãos técnicos. No box da deputada Miriam Marroni (PT), estão cópias do relatório final da Comissão Especial dos Direitos da Mulher, aprovado em dezembro de 2015.
Material defasado
Um em cada três deputados guarda boletins informativos impressos há mais de seis meses e que dificilmente serão distribuídos. Na semana passada, a reportagem flagrou centenas de caixas com materiais produzidos pelos gabinetes de pelo menos 16 parlamentares entre 2013 e 2016. Os maiores volumes foram localizados nos boxes dos deputados Adilson Troca (PSDB), Marlon Santos (PDT) e Sergio Peres (PRB). Também foi encontrado material defasado dos parlamentares Adão Villaverde (PT), Eduardo Loureiro (PDT), Elton Weber (PSB), Gilberto Capoani (PMDB), Gilmar Sossella (PDT), Juliano Roso (PC do B), Luis Augusto Lara (PTB), Ronaldo Santini (PTB), Sérgio Turra (PP), Tarcísio Zimmermann (PT), Tiago Simon (PMDB), Valdeci Oliveira (PT) e Vilmar Zanchin (PMDB).
Material de ex-deputados
Eles já não ocupam cadeiras na Assembleia, mas materiais impressos durante seus mandatos seguem por lá. Ana Affonso (PT) saiu em 2015 e foi eleita vereadora em São Leopoldo no ano seguinte. Ficaram para trás cartilhas sobre enfrentamento da violência contra a mulher. Em outro canto, cerca de cem caixas da Corag, pertencentes ao ex-deputado Jorge Pozzobom (PSDB), hoje prefeito de Santa Maria, guardam cópias do Estatuto da Criança e do Adolescente e de uma cartilha intitulada Gigantes invioláveis. A obra, de 2016, tem a proposta de explicar para crianças os direitos fundamentais descritos no artigo 5º da Constituição.
Estatutos
Embora se tratem de legislações federais e estejam disponíveis na internet, os estatutos do Idoso e da Criança e do Adolescente (ECA) estão entre os principais itens impressos pelos gabinetes parlamentares. Nas vagas de estacionamento dos deputados Sergio Peres (PRB) e Zilá Breitenbach (PSDB), por exemplo, caixas lacradas traziam a inscrição “ECA” e “Idoso”. Os parlamentares também costumam estampar sua logomarca nessas reproduções.
Santinhos
Candidata a vice-prefeita da Capital em 2016, Juliana Brizola (PDT) ainda guarda santinhos e bandeiras da campanha em sua vaga no estacionamento da Assembleia. No box de Maurício Dziedricki (PTB), uma pilha de impressos do deputado e, em uma das caixas, panfletos de um candidato a vereador pelo PTB em Ronda Alta. Em um canto, próximo de materiais da ex-deputada Ana Affonso (PT), um maço de jornais amarelados da campanha do ex-governador Tarso Genro (PT). No andar de baixo, na vaga do deputado Pedro Pereira (PSDB), outra caixa com santinhos que sobraram da campanha de 2014, quando o tucano concorreu à reeleição.
Discurso de posse encaixotado
Três anos depois da cerimônia de posse de Gilmar Sossella como presidente da Assembleia, quatro caixas com a logomarca de uma gráfica privada ainda guardam centenas de exemplares da cópia do discurso do pedetista. A íntegra da fala – embora esteja disponível na internet, inclusive no site do Legislativo – foi impressa em 10 páginas, em papel colorido e de gramatura espessa. “Cada deputado estadual é um arauto de esperança para as mais pungentes angústias dos seus representados”, diz trecho do texto. Depois de Sossella, outros três parlamentares já ocuparam o comando da Casa.
CONTRAPONTOS
MATERIAL DEFASADO - Boletins informativos e relatórios de comissões
Adão Villaverde (PT)
"Normalmente, são materiais que a gente acaba reutilizando nas atividades, de balanço de mandato. Nós vamos distribuir em locais que ainda não receberam. São materiais que trabalham com projetos nossos e que seguem atualizados. Não são materiais conjunturais."
Adilson Troca (PSDB)
Segundo a assessoria do tucano, os materiais costumam ser reimpressos ano a ano e são distribuídos para projetos, além de eventos e agendas públicas. A assessoria reiterou que o conteúdo das cartilhas é atemporal.
Eduardo Loureiro (PDT)
"A gente vai distribuindo gradativamente, são informativos do mandato. Nós vamos despachando, conforme vamos fazendo o roteiro no interior. Nós viajamos muito, o pessoal leva uma determinada quantidade (por viagem)."
Elton Weber (PSB)
"A maior parte, certamente, é do segundo semestre do ano passado. Vamos distribuir alguma coisa ainda e outra vai ficar", disse o deputado. Posteriormente, a assessoria informou que sobraram 2,4 mil exemplares do primeiro semestre de 2016, sendo que 400 foram devolvidos pelos Correios e serão incinerados.
Frederico Antunes (PP)
"Temos bem pouco material, e o que está lá ainda estamos distribuindo. Temos alguma coisa sobre precatórios, e esse assunto não terminou. Os relatórios da aviação regional eu também continuo distribuindo. Mas devo ser o que menos tem material na garagem, porque eu fico louco de ver material na minha garagem. Estou sempre tirando e colocando nas mãos de pessoas que têm interesse."
Gilberto Capoani (PMDB)
"Muitos voltaram. Tu manda pelos Correios, o cara muda de endereço... Quantas caixas tem lá? Duas ou três? Isso é sobra de guerra. Já estamos fazendo outros já. A Assembleia sempre junta o material, não sei se reciclam ou para onde vai."
Gilmar Sossella (PDT)
"Qual o problema de não ter sido distribuído? Desculpa dizer, mas acho que tinha outras para explorar. Sabe o que eu faço agora? Nos meus roteiros vou estar levando. Estou levando material. Meu pessoal vai distribuir. Se tá pensando que vou jogar fora, não vou jogar fora. Sou o gringo mais pão-duro da história."
Juliano Roso (PC do B)
A reportagem não conseguiu localizar o deputado até a publicação desta reportagem.
Luís Augusto Lara (PTB)
"O que tenho lá de 2015 é um material referente à Comissão de Finanças. São 15 caixas de 300 informativos, dá 4,5 mil informativos, que devem sair na primeira quinzena. Eles têm que ser distribuídos mensalmente em função da cota. Você manda fazer material por um ano, mas só pode ir distribuindo uma determinada cota, porque tem cota de postagem."
Marlon Santos (PDT)
A reportagem não conseguiu localizar o deputado até a publicação desta reportagem.
Miriam Marroni (PT)
Conforme a assessoria, boa parte do material está nas caixa por se tratar de devolução. "Muitos deles são distribuídos a pessoas cadastradas para recebê-los por mala direta via Correios, por exemplo. Por conta de endereços errados, que não foram encontrados ou inexistentes, acabam retornando. Esse é o caso dos informativos do mandato de 2015." As sobras serão encaminhadas para uma cooperativa de reciclagem.
Ronaldo Santini (PTB)
"Não tem espaço físico no gabinete. Todo material que é reproduzido é utilizado nas áreas específicas. No jornalismo, a matéria fica velha. No material parlamentar, não."
Sérgio Peres (PRB)
"Enviamos o material por Sedex ou, quando vamos para as regiões, levamos junto para distribuir. No caso desses boletins de 2015, deve ser alguma caixa que foi esquecida."
Sérgio Turra (PP)
"Tenho alguns informativos na garagem, mas são do fim de 2016 e ainda estamos distribuindo. Não são obsoletos. Costumamos produzir dois por ano."
Tarcísio Zimmermann (PT)
"Esse material não foi pago com dinheiro da Assembleia. Foi pago com o salário do deputado. O que acontece é que às vezes sobra, mas não é um volume muito grande."
Tiago Simon (PMDB)
"Lamento esse tipo de reportagem, porque fica parecendo que tudo é desperdício, e não é verdade. Sou um dos deputados que menos gasta na Assembleia. Os exemplares que tenho no estacionamento são atemporais, tratam de temas atuais e seguem sendo distribuídos. É uma forma de prestação de contas. Optei por fazer uma tiragem maior, porque é mais econômico. Além disso, não torro material. À medida que vou para o interior, reponho os folhetos no porta-malas para distribuí-los. Me preocupo muito em conter despesas. Em 2016, gastei apenas sete diárias e decidi renunciar ao meu reajuste salarial, gerando economia aos cofres públicos."
Valdeci Oliveira (PT)
"Acredito que sejam materiais da Comissão de Saúde, referentes à cartilha do idoso, que foram distribuídos entre os deputados. Vou verificar isso."
Vilmar Zanchin (PMDB)
O deputado, inicialmente, negou ter materiais no seu box e disse que "costuma reclamar, inclusive, que falta material". Depois, a assessoria entrou em contato para informar que as caixas tinham sido retiradas de um veículo que foi para revisão e que, embora sejam peças de 2015, serão distribuídas.
OUTROS MATERIAIS
Zilá Breitenbach (PSDB)
"Eu trabalho com material educativo, não faço boletins informativos. Não tenho desperdício. Como é educativo – são estatutos, como o dos idosos – não tem validade de término. Onde vou, o pessoal pede, tem uma bela saída."
Liziane Bayer (PSB)
"Os exemplares da Constituição são feitos pela Casa, para uso dos deputados e para distribuição. Sempre que uma escola ou universidade pede, a gente distribui."
EX-DEPUTADOS
Jorge Pozzobom (PSDB), atual prefeito de Santa Maria
"As 26 caixas do ECA irão para a Associação de Conselheiros Tutelares do RS, que irá distribuir para todo o Estado. Tenho duas caixas com o Código de Processo Civil, que vão para uma faculdade. O maior volume, que são 67 caixas do projeto Gigante Invioláveis, de uma professora de Santa Maria, nós vamos distribuir para a rede municipal. Tenho a total e absoluta tranquilidade que todo o material que eu fiz foi relacionado ao meu mandato e foi submetido à apreciação da procuradoria da casa."
Ana Affonso (PT), vereadora em São Leopoldo
Por nota, informou que soube da existência de impressos após contato da reportagem e que o material "será recolhido imediatamente para ser aproveitado no seu gabinete, na Câmara de Vereadores de São Leopoldo, evitando quaisquer desperdícios, tendo em vista que as cartilhas tratam das leis de proteção às mulheres no Estado e estão atualizadas" e que "supõe que os impressos encontrados na garagem estavam espalhados pelas comissões da Casa, pois quando desocupou seu gabinete na Assembleia Legislativa, ao final do seu mandato, retirou todos materiais e pertences".
MATERIAL DE CAMPANHA
Pedro Pereira (PSDB)
A assessoria do deputado informou que o material é sobra da campanha de 2014 e que foi retirado de um veículo para ser encaminhado para o escritório do deputado em Canguçu.
Juliana Brizola (PDT)
Por nota, a assessoria informou que "trata-se de uma mínima sobra de material de campanha que estava lá aguardando ser encaminhada para reciclagem".
Maurício Dziedricki (PTB)
A assessoria do parlamentar disse que o material gráfico "encontra-se nas dependências da Assembleia para ser distribuído gradativamente de acordo com as interiorizações realizadas pelo parlamentar nos municípios do interior do Estado" e que o deputado "optou por não realizar a entrega via Correios para colaborar com a redução dos gastos do Legislativo". Sobre o material de um candidato a vereador, disse que "o mesmo será enviado para reciclagem pois foi materializado erroneamente".