Na mitologia romana, o deus Jano - uma figura com dois rostos virados para lados opostos - representa o contraditório. Não é uma referência tão distante de nós. Seu nome batizou o mês de janeiro, quando olhamos para trás para contemplar o ano que passou e, ao mesmo tempo, para frente, aguardando o inesperado.
Foi assim com o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), que se posicionou no cenário político nacional como uma das vozes mais contundentes na defesa da ética e da moral.
Diálogos telefônicos divulgados nos últimos dias, no entanto, mostram uma proximidade entre o parlamentar e o empresário Carlos Augusto de Almeida Ramos, conhecido como Carlinhos Cachoeira, preso no final de fevereiro em uma investigação sobre a exploração ilegal de jogos de azar. Trata-se de uma surpresa ou do tradicional feijão com arroz da política nacional?
O senador Pedro Simon (PMDB), 82 anos, considera a revelação sobre Demóstenes Torres, 51 anos, "um choque muito violento":
- Antes de mais nada, é um caso de psiquiatria. Ele tem duas personalidades. Não pode estar conosco durante anos, mostrando ser uma pessoa, e de repente aparecer um outro lado que revela ser outra pessoa - afirma o parlamentar gaúcho, acrescentando: - Esse rapaz é uma das pessoas pelas quais eu tinha maior respeito e carinho. Torci por ele, mas os fatos que apareceram são tão brutais, as gravações, a voz. O que ele podia fazer é renunciar antes de ser desfiliado do Democratas.
Analistas, por outro lado, minimizam a surpresa em torno de mais uma notícia de irregularidade.
- O episódio não significa nada. Várias pessoas em Brasília foram eleitas com a mesma plataforma (da ética). Todos dizem que estão preocupadíssimos com o assunto, só que alguns defendem com mais vigor e outros com menos - observa o cientista político Ricardo Caldas, professor da Universidade de Brasília (UnB), para quem a notícia é "mais uma confirmação de que a política brasileira precisa de reforma".
Episódio "trivial" da cena política
O que explica o tempo relativamente longo em que Demóstenes conseguiu mostrar publicamente apenas uma das faces de Jano?
- Ele talvez tenha concentrado suas fichas em um só patrocinador. Se você tem vários doadores ilegais, você se expõe muito. Se tem um só, talvez a exposição seja menor - analisa Caldas.
O cientista político salienta que os parlamentares devem se pautar, acima de tudo, pelo decoro:
- Cumprir a lei é necessário, mas não é suficiente. O decoro vai além da legalidade. Só o fato de estar tão associado a um empresário de um setor ilegal já é suficiente para descaracterizá-lo como representante.
Antropólogo e professor da PUC-Rio, Roberto DaMatta considera o episódio mais uma mostra do "trivial da política brasileira".
- O que vai me surpreender é se aparecer um partido que tenha consistência, que seja a favor de pagar muito aos professores e pouco aos ministros, que seja absolutamente transparente em relação a obras públicas - exemplifica.
Que Demóstenes tenha mantido a imagem de paladino da ética por tanto tempo tampouco deveria causar surpresa, segundo DaMatta:
- Todos nós somos muitos. É o princípio básico da psicologia humana. A consistência é um ideal que tem de ser procurado todos os dias.
Jogo duplo
Considerado referência ética no Congresso, denúncias sobre conduta de Demóstenes surpreendem parlamentares
Diálogos telefônicos revelam proximidade entre o senador e o empresário Carlinhos Cachoeira, preso após investigação sobre exploração ilegal de jogos de azar
Fábio Prikladnicki
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