As fundamentações narradas na peça de impeachment contra o prefeito Daniel Guerra (Republicanos) compreendem fatos ocorridos em 2019. É inegável, entretanto, que o pedido de cassação, o sétimo em cerca de dois anos, foi resultado de um desgaste iniciado muito antes, e precede até mesmo a relação conturbada com o vice-prefeito eleito, Ricardo Fabris de Abreu, que se tornou o principal antagonista do chefe do Executivo desde o seu rompimento oficial com o governo, quando renunciou ao cargo em 28 de dezembro de 2018.
Daniel Antônio Guerra iniciou a vida política aos 33 anos, em 2005, assumindo a Secretaria Municipal de Turismo no governo de José Ivo Sartori (MDB). Permaneceu como titular da pasta até 2008, quando deixou o cargo, para concorrer a vereador pelo PSDB. Quando se elegeu parlamentar, em 2009, começou efetivamente a carreira política. Reelegeu-se em 2013 e, já no primeiro ano do segundo mandato, destacou-se com atuação polêmica, sendo expulso pelo PSDB naquele mesmo ano pela postura oposicionista ao próprio partido.
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Na época, atribuiu a expulsão a "interesses obscuros" e acusou a sigla de "fazer conchavos por cargos".
— Não me submeto ao governo, minha posição é inegociável. Vou continuar defendendo o que for bom para a população até o último dia. Não compactuo com jeitinhos — disse na ocasião.
O episódio marcou publicamente o início da relação de desafetos. Cerca de um mês após a expulsão, Guerra filiou-se ao PRB (atual Republicanos). Pelo partido, na Câmara de Vereadores, iniciou forte oposição ao então prefeito Alceu Barbosa Velho (PDT).
As desavenças se intensificaram e os bate-bocas eram recorrentes entre os vereadores, quando, em junho de 2015, Guerra admitiu a intenção de concorrer a prefeito.
Com postura igualmente polêmica, a campanha e os debates com Daniel Guerra foram marcados por discursos contundentes contra os adversários. A disputa eleitoral consagrou Guerra prefeito de Caxias do Sul em 30 de outubro de 2016 com 148.501 votos válidos, 62,79% do eleitorado.
Mesmo no discurso após a vitória, Guerra não poupou provocações.
— Essa vitória é do povo. Eu convido a todos para que possamos comemorar esse momento dando um grande abraço no prédio da prefeitura. Estamos com esse gesto, devolvendo às pessoas de Caxias do Sul o prédio da prefeitura, como uma forma simbólica, mas profunda, de dizer que será uma prefeitura das pessoas, e não dos partidos políticos — afirmou na época.
Em 1º de janeiro de 2017, iniciou-se o mandato de Daniel Guerra. Dois anos e 11 meses depois, os conflitos se ampliaram, com sete pedidos de cassação. O Pioneiro elencou os principais conflitos que ocasionaram a relação insustentável entre os poderes e culimaram no afastamento do prefeito neste domingo.
OS PILARES
1. A RELAÇÃO COM O VICE
* Daniel Guerra e o advogado e servidor público federal Ricardo Fabris de Abreu se conheceram cerca de um ano e meio antes das eleições. Adepto de direita com aspectos de conservador, as características ideológicas foram compatíveis com a linha de Guerra.
* Em entrevistas, Fabris sempre ressaltou como "obsessão" a proposta de municipalização da polícia, que daria poder de polícia à Guarda Municipal, assim como propostas referentes à política de segurança pública. Mas não foi nomeado. É a origem dos conflitos. O ex-prefeito seria o responsável pela assinatura de três pedidos de impeachment, sendo o último este que agora foi aprovado.
* Em 28 de dezembro de 2018, Fabris renúncia oficialmente ao cargo. Na época, comentou: "Tenho a satisfação de informar que afastei-me do que é grotesco."
2. FALTA DE DIÁLOGO E RETALIAÇÕES
COM A CIC
* Embora inicialmente tenha recebido apoio manifestado pela entidade, ainda em 2017, as primeiras críticas da CIC começaram a surgir a respeito da gestão. Na época, o então presidente da CIC, Nelson Sbabo, afirmou em reunião-almoço, em tom crítico à equipe de secretários de Daniel Guerra: "Caxias do Sul não começou em 1º de janeiro de 2017." Sobre a CIC apoiar o governo municipal, respondeu: "Por enquanto, sim."
* A ausência de Daniel Guerra em uma reunião de trabalho com representantes da CIC causou desconforto ao presidente Ivanir Gasparin. Na ocasião, o então chefe de gabinete da prefeitura, Júlio César Freitas da Rosa, avisou que o prefeito não compareceria, alegando outros compromissos. "Democracia só existe com diálogo", cobrou Ivanir Gasparin em reunião-almoço com Daniel Guerra.
* A entidade também lamentou falta de consideração do poder público pela opinião da CIC na organização da Festa da Uva, a não participação na programação do Dia do Vinho deste ano e a mudança de região turística para as Hortênsias.
*Neste ano, Ivanir Gasparin afirmou que os empresários caxienses estavam "com medo do prefeito".
COM A UAB
* Pouco mais de um mês após assumir, Daniel Guerra não recebeu comitiva da União das Associações de Bairros (UAB) na prefeitura. Em fevereiro de 2017, após diversas tentativas frustradas, integrantes da entidade foram até o Centro Administrativo, mas, após duas horas de espera, foram avisados de que Guerra não poderia recebê-los. Na época, a entidade comunicou ter se sentido "desrespeitada".
* Somente em abril o prefeito recebeu a direção da entidade comunitária, na antessala do gabinete.
* No mesmo ano, em setembro, a prefeitura enviou um pedido a 45 associações de moradores (Amobs) e a entidades assistenciais para devolução de imóveis públicos. A alegação era de que 43 delas estavam em situação irregular.
* Em julho, a prefeitura cobrou na Justiça dívida de R$ 95.222,74 da UAB devido a pendências financeiras com o município.
OUTROS CONFLITOS
* Vereadores: além das desavenças herdadas do período em que atuou como parlamentar, a falta de diálogo foi reclamação contínua no plenário. A inexistência de reuniões institucionais e o alto número de vetos a projetos aprovados (30 desde o início do governo) decretaram a má relação entre os poderes.
* Saúde: O "desprezo" pelo Conselho Municipal de Saúde para fechamento do Pronto-Atendimento 24 horas, o Postão, é um dos itens do pedido de cassação e demarca o conflito gerado com o conselho em relação às decisões de fechamento da unidade e mudança administrativa do local para gestão compartilhada.
* Cultura: o descontentamento de produtores e agentes culturais também foi assunto recorrente. A falta de avanços na ocupação do prédio da antiga Metalúrgica Abramo Eberle SA (Maesa) e restrições no Financiarte (com redução de valor e de contemplados) foram notórias. O corte de investimentos ao Carnaval de Rua também foi uma decisão controversa e protestada pela comunidade carnavalesca do município.
3. A PRAÇA DANTE
* A Praça Dante Alighieri, principal referência central de Caxias do Sul, acabou sendo simbólica também como ponto de conflito do poder público. Duas das denúncias votadas pela Câmara de Vereadores no sétimo pedido de impeachment referenciam o local como palco de desavenças: a negativa para cedência da área para realização da Parada Livre e a Bênção dos Freis Capuchinhos. A proibição do uso de espaço público acabou sendo o estopim para reforço do pedido de cassação.
* Foi também a Praça Dante Alighieri tema de outro conflito, com a maçonaria. No primeiro semestre deste ano, a prefeitura apresentou projeto de revitalização do local. Uma das mudanças seria no próprio traçado, que, visto de cima, compõe-se por um esquadro e um compasso, símbolos da maçonaria. Em outro indicativo da desavença com a maçonaria, a prefeitura retomou posse de um terreno público ocupado pela Loja Maçônica Duque de Caxias, no bairro Exposição, em agosto.
* Ainda há um terceiro conflito que se irradia a partir da Praça Dante, quanto à ocupação das bancas de jornais e revistas, que a prefeitura pediu de volta aos concessionários. Uma das duas bancas da praça, inclusive, restou demolida. A outra, este mês, passou a receber produtos de agroindústria, deixando de lado projeto aprovado pela Câmara para tornar os espaços bens culturais de valor imaterial de Caxias do Sul. Isto é, não podem ter a estrutura e a destinação alteradas. A última decisão da Justiça é de que os espaços devem voltar à estrutura original, sem descaracterização. Além da banca que restou da praça, a polêmica envolveu outras três bancas: na Rua Marechal Floriano, ao lado da UPA Central, na Praça João Pessoa, em São Pelegrino, e na Rua Alfredo Chaves, ao lado da prefeitura.
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