A participação e o apoio das mulheres foi fundamental no apoio dados aos perseguidos políticos pelo regime militar em Caxias do Sul, que nesta segunda-feira, completa 50 anos do golpe, que impôs um regime que durou 21 anos no país.
"Quando eu cheguei, ele estava tomando chimarrão e lendo. Dei um beijo na testa. Ele se abraçou em mim e chorou que nem criança. E eu não chorei. Ele acreditava que eu ia procurar ele. Outros que foram presos diziam que estavam perdidos, que não tinham companheiras. E ele disse: eu tenho certeza que eu tenho uma companheira, e essa companheira não falha chegar aqui."
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Pela dedicação inesgotável da mulher (comprovada no depoimento acima), o ex-vereador e advogado Percy Vargas de Abreu e Lima não tinha dúvidas de que ela iria procurá-lo na prisão após o golpe militar. O advogado foi capturado em 1964 por causa das ideias sobre uma sociedade sem desigualdades e pelas práticas comunistas que difundia em Caxias. Da militância à condução da solidariedade que lhe era característica, um dos principais líderes comunistas da cidade teve o apoio fundamental da mulher, Elma Fussinger de Abreu e Lima.
Os militares prenderam Percy quando ele estava dormindo, na madrugada de 6 de abril de 1964. Armados de fuzis, reviraram a casa, esvaziaram armários, levaram o que bem entenderam. No mesmo dia, outros comunistas também haviam sido presos. Levados a Porto Alegre, todos ficaram num cubículo, em pé. Cada um tirou o casaco e o botou no chão para o líder de 58 anos, debilitado pela tuberculose, deitar. No dia seguinte, Percy foi transferido para o Sanatório Belém.
Elma deixou os filhos Madalena e Pedro Paulo sob os cuidados de parentes em Caxias e mudou-se por oito meses para Porto Alegre. No sanatório, ela tratou de providenciar comida, além de assumir os cuidados do marido. Percy preferia a delicadeza de Elma, não queria que as enfermeiras aplicassem as injeções. A mulher também providenciou um fogareiro para preparar a comida no quarto. No banheiro, lavava e estendia roupas. A rotina era completada por leituras que Elma fazia para Percy, que ao final de cada livro direcionava perguntas à esposa para saber se ela havia assimilado o conteúdo da obra.
A parceria entre o casal havia iniciado quase três décadas antes. A enfermeira chegou em Caxias aos 18 anos para trabalhar no Hospital Pompéia. Percy costumava visitar a instituição, e cabia a Elma a função de atender o já famoso advogado. Entre um elogio sobre o café que Elma passava e outro, surgiu o interesse mútuo, veio o namoro, e logo os dois se casaram.
Elma atuou junto a Percy no Partido Comunista, doutrinando outras mulheres. "A gente ensinava a respeitar uns aos outros", contou. Percy considerava comunista aquele que ajudava o próximo e não se abstinha de praticar a teoria. Não ficava com duas roupas: se tinha duas peças, dava uma para alguém que não tinha nada.
Tal prática acarretava consequências trabalhosas para a esposa. Como Percy mantinha apenas um terno, Elma varava madrugadas lavando e passando o traje para o marido enfrentar juris no dia seguinte.
O advogado também tinha o hábito de não cobrar por ações que defendia. Quem financiava o homem comunista era a mulher trabalhadora, além da solidariedade dos amigos.
Percy e Elma acolhiam crianças de rua. Num período, chegaram a ser 14 morando na mesma casa. As crianças eram sustentadas com a ajuda de outros advogados e amigos de Percy. Porém, a responsabilidade de lavar, passar, cozinhar e educar os jovens era, principalmente, de Elma.
Para apoiar o marido e dar conta das tarefas de mãe, esposa e dona de casa, Elma sacrificou-se. Assava pães e bolos para vender, além de costurar, bordar, lavar e passar roupas para fora. Apesar da rotina que normalmente seguia até meia-noite, Elma se dizia satisfeita. E não reclamava de Percy.
"Preferia eu estar trabalhando do que brigando. Ele me ensinou a viver."
Elma morreu em outubro de 2013, aos 96 anos. O depoimento dessa reportagem foi dado ao Banco de Memória do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami, em maio e junho de 2005, em Lajeado Grande, São Francisco de Paula, onde ela morava.
Esposa de médico relata momentos de tensão
O médico Henrique Ordovás Filho, um dos principais líderes da resistência contra a ditadura em Caxias do Sul, também foi preso nos dias posteriores ao golpe. No início da madrugada, os repressores chegaram à casa da família, não sem antes realizarem um sorteio no quartel para decidir quem seria o responsável pela prisão do renomado pediatra.
- Foi sorteado um sargento grande e forte que disse: "não vou. Eu tiro ele da cama de madrugada para atender os meus filhos e agora eu vou tirar para prendê-lo? Não vou." e começou a chorar - relembra Reny Camila Ordovás, 87 anos, esposa do médico já falecido.
Assista a um vídeo com o depoimento de Reny
Os militares que prenderam Ordovás autorizaram que ele se vestisse para ir a Porto Alegre. Ao chegar na prisão, Reny percebeu que o marido havia distribuído as poucas peças de roupa entre os companheiros que não tiveram a mesma chance ao serem abordados pelos militares.
No período da prisão, que durou 21 dias, Reny perdeu 12 quilos e chegou a ir e voltar três vezes à Capital em um mesmo dia. Os militares pediam um documento para a soltura de Ordovás, Reny buscava e, ao chegar de volta em Porto Alegre, descobria que tinha sido enganada para que o processo de soltura fosse dificultado.
- Eu só tinha a ideia fixa de tirar o Ordovás da cadeia. Não sentia medo. Sentia era muita coragem - garante.
50 Anos do Golpe Militar
Mulheres davam apoio aos perseguidos políticos em Caxias do Sul
Relatos de esposas de presos do regime militar revelam como foram os momentos de angústia na época
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