A doação de órgãos é um ato que pode salvar muitas vidas, mas que ainda envolve muitas dúvidas sobre como funciona. Na tarde desta quarta-feira (23), uma grande mobilização ocorreu em Caxias do Sul para que o coração de um menino caxiense fosse transportado ao Paraná. O órgão era compatível para o transplante em uma menina de 11 anos que mora em Curitiba. A cirurgia foi um sucesso, segundo Nádia Ferreira Navarro, médica intensivista pediátrica e coordenadora da UTI pediátrica do Hospital Geral (HG):
— O órgão chegou bem. Depois de 3h20min o coração já estava batendo na outra paciente.
O órgão do menino de oito anos, que morreu na terça (22), foi transportado por um avião da Força Aérea Brasileira (FAB). A mobilização foi possível graças à decisão da família que optou pela doação.
Conforme o médico intensivista e responsável pela Comissão intra-hospitalar para doação de órgãos e tecidos para transplante (Cihdott) do Hospital Geral (HG), Rafael Lessa, o coração precisava ser transportado e transplantado em até quatro horas após a retirada do corpo do doador, pois, para cada órgão do corpo humano, há o chamado tempo de isquemia, que se refere ao período crítico no qual um órgão é privado de fluxo sanguíneo adequado antes de ser transplantado.
— O órgão é captado do doador, mas não é colocado diretamente no gelo. Primeiramente é colocado num líquido de preservação. Cada tipo de órgão tem um tempo específico de isquemia. O coração, por exemplo, tem de três a quatro horas. Já o fígado e o pâncreas têm cerca de 12 horas, já os rins podem chegar a até 48 horas — explica Lessa.
O médico sintetiza ainda que, quando a família opta pela doação, é iniciado o processo de coleta de uma série de exames, que vão desde um simples hemograma até o chamado HLA (Antígenos Leucocitários Humanos), que serve para determinar a compatibilidade entre doador e receptor. Portanto, o principal papel da Cihdott, cuja equipe é composta por psicólogos, médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, é o de identificar possíveis pacientes que podem ter morte cerebral.
Não é qualquer tipo de morte que viabiliza a doação, como explica Lessa. Para que os órgãos possam ser transplantados, é preciso que sejam retirados enquanto o coração ainda bate – o que só é possível em casos de morte encefálica, quando todas as funções do cérebro param de maneira completa e irreversível.
— Esse processo todo leva um tempo. O protocolo de morte encefálica tem um objetivo primário que é dar ao paciente e ao familiar um diagnóstico de vida ou de óbito. O objetivo secundário, após a identificação da morte cerebral, é identificar a possibilidade da doação, se consentida pela família — diz.
A partir do consentimento da família e da realização dos exames, a Central Estadual de Transplantes (CET) e o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) coordenam a distribuição dos órgãos conforme fila e compatibilidade.
Desafios em casos infantis
Tecnicamente, órgãos de crianças podem funcionar em um humano adulto se forem compatíveis, mas o tamanho e a compatibilidade imunológica são fatores extremamente importantes, segundo Lessa:
— É como um quebra-cabeça. Eu só consigo colocar uma peça no lugar que ela cabe.
Conforme o médico intensivista, cerca de 90% das mortes cerebrais são identificadas em pacientes vítimas de acidente vascular encefálico ou traumatismo cranioencefálico grave. Isso torna o processo de transplantes infantis um desafio.
— Crianças, em geral, não morrem disso. Quem morre de AVC são pessoas mais doentes. Já quem sofre traumatismo cranioencefálico, são, normalmente, vítimas de acidente ou de morte violenta, o que, em geral, é mais comum em adultos. A morte cerebral em criança é mais rara de acontecer — exemplifica.
De acordo com Lessa, o processo de doação de órgãos avançou ao longo dos anos. Atualmente, a taxa média de aceitação das famílias em doar os órgãos é de menos de 50%.