À primeira vista, ruínas de um moinho e de uma residência típica do início do século 20, com uma pontesel (espécie de passarela coberta, no dialeto vêneto) que ligava cozinha a quartos, como se fossem duas casas (uma forma de evitar perder tudo em caso de incêndio, por conta dos antigos fornos de pão). Mas a redescoberta da Associação de Turismo da Serra Nordeste (Atuaserra) de uma propriedade com a estrutura datada de 1900, em Coronel Pilar, tem mais a contar sobre a história da cidade e da região do que os efeitos que o tempo e a natureza causaram no lugar que abrigou a família Anderle por quatro gerações.
Sem moradores há quase 50 anos, a propriedade pertence à família desde a chegada do austríaco Francesco Anderle e da italiana Paulina Guarnieri, por volta de 1890. Ali, no interior da localidade que pertenceu a Garibaldi até 1996, o casal iniciou a vida no Brasil com base na agricultura, criação de gado e produção de farinha de trigo.
A história pode até lembrar a de outros imigrantes, mas o que torna a redescoberta enriquecedora, como explica a arquiteta Paula Fogaça, associada à Atuaserra, é a estrutura construída por Francesco, com um moinho para produção de farinha de trigo, alambique para moer cana e produzir bebidas, dique, uma ferraria, a residência e ainda um riacho.
Veja no vídeo abaixo:
Todos os espaços se conectavam, como a existência da ferraria por conta do moinho e dos cavalos, principal meio de transporte da época. No início do século 20, inclusive, a casa dos Anderle era ponto de encontro de toda uma comunidade, funcionando, ao mesmo tempo, como uma indústria, onde também ocorriam trocas de suprimentos, além de ser endereço para bailes. Um recorte do que ocorreria em toda a região nas primeiras décadas dos imigrantes.
— Você vê uma arquitetura residencial, da área do interior, você vê uma indústria do período, as estradas que chegam ao local, e ainda uma questão de engenharia, que é o dique que passava pelos canais. Então, é um conjunto bem interessante. E também a questão da paisagem cultural. É bem raro esse conjunto todo — descreve Paula.
A propriedade de 11 hectares também foi a primeira daquela região a ter energia elétrica a partir de um dínamo (que converte energia mecânica em eletricidade). As estruturas em si contam parte da história da imigração, de tempos em que não existiam luxos, mas sim soluções para uma necessidade — muitas construídas à mão. A arquitetura, por exemplo, era feita com o que se tinha disponível, o que dava uma característica para cada localidade da Serra.
Tudo era na base do erro e do acerto, o que deixa ainda mais fantástica as construções, como a do dique. A estrutura era utilizada para escoar a água para o moinho, por meio de um canal, fazendo com que ele funcionasse — seja por roda d'água, por motor a vapor ou por turbina, os três sistemas que foram usados ao longo dos anos. Tudo foi feito de forma artesanal e com as ferramentas disponíveis na época.
— O homem analisa o que tem no entorno e cria a partir daquilo. Por exemplo, as casas de pau a pique, casas de pedra, as primeiras de madeira, essa tecnologia se chama arquitetura vernacular. Eles não foram longe buscar pedaços de pedra, construíram com o que tinha disponível, mas com expertise avançada. Eles construíram a partir daquilo uma indústria, e primeiro o dique, que rompeu, depois analisando e fazendo novos cálculos, conseguiram um novo dique que desse o caimento correto e que não rompesse — explica a arquiteta.
A vida antes da cidade grande
Da última geração da família Anderle que morou na propriedade em Coronel Pilar, Anita, 85 anos, e os filhos Antoninho, 63, e Amarildo Luís, 60, se reconectam com o passado. Ao passar das décadas, a família voltou poucas vezes para visitar a velha casa. Mas, agora que Antoninho está aposentado, o plano é limpar a área e ter uma lembrança de como era antigamente:
— Eu quero ver limpo de novo, mas os planos do futuro só Deus sabe (sobre o que fazer na propriedade). Eu volto no tempo. Tem uma parte que fica feliz de estar aqui, mas outra deixa triste porque está feio. É uma mescla de sentimentos bons e lamentações.
Anita casou-se com Aquilino, neto de Francesco e Paulina. Por isso, morou 13 anos na propriedade, até que mudou-se com o marido para a capital gaúcha, por volta de 1970. Antoninho e Amarildo nasceram neste mesmo terreno e é dali que saem as primeiras memórias da infância, de uma vida no campo, sem a acelerada rotina da cidade grande.
— Os banhos nos rios, as pescarias, os lambaris... Nossa brincadeira era ficar em cima da árvore de bergamota. Era outra vida, ninguém mais faz — relembra Amarildo, contando que passava todas as férias com o irmão na propriedade.
A família ainda lembra dos mergulhos em que viam grandes peixes, das corujas brancas que apareciam, da parreira de uva, da criação de gado e da lavoura. Hoje, por exemplo, quem "mora" no lugar é uma cobra caninana de 2,5 metros.
Dona Anita também lembra dos bailes feitos no salão do primeiro piso da casa de dois andares. Com uma bengala improvisada e querendo vasculhar toda a área, ela conta que tinha que fazer muitas cucas para as noites de festa, que ainda tinham salame e cerveja no cardápio. A bebida era trazida pelos vizinhos e colocada em um grande barril, com gelo. Ao voltar na propriedade, a aposentada tem o mesmo sentimento dos filhos:
— É alegria e tristeza ao mesmo tempo. Eu chegar hoje aqui foi uma coisa, "Bah, maravilhosa". Ver as coisas todas estragadas, assim, barbaridade, é muito chocante. Aqui, ver as coisas que eram bem conservadas, que funcionavam, acabando. Nada tinha esses matos, nada.
Para ativar o turismo em Coronel Pilar
A redescoberta da moradia em Coronel Pilar aconteceu durante uma análise da Atuaserra. Quando a cidade associou-se à entidade, foi iniciado um trabalho para ativar o turismo na cidade, que tem a menor população urbana do Brasil. O primeiro passo foi identificar locais potenciais para o setor, caso da propriedade dos Anderle.
— O turismo precisa do patrimônio, tu precisa contar uma história. Tem turismo contemporâneo sim. Mas a maior parte do turismo conta uma história do que é peculiar, as pessoas não vão sair de casa para ter uma experiência do que elas já têm na cidade delas. Então, por que as pessoas vão para Europa ficar horas e horas batendo perna em diversos centros históricos? Porque é uma realidade diferente da que ela vive, com arquiteturas diferentes — destaca a arquiteta Paula Fogaça.
A partir da identificação, a entidade contata os proprietários, como ocorreu com a família Anderle, com acompanhamento do município, para orientar sobre como pode ser feito o empreendimento.
Dentro desse contexto, alguns dos passos tomados são:
:: Visita técnica: feita para levantar o histórico do local, realizar uma espécie de inventário e orientar o empreendedor sobre as primeiras etapas. Em um ponto histórico, por exemplo, existe o cuidado de atentar-se ao que pode surgir em uma limpeza, como artefatos históricos (na propriedade de Coronel Pilar, por exemplo, foram encontradas telhas de 1850). Um arqueólogo participa da etapa.
:: Relatório técnico: apresenta-se a parte da arqueologia, biologia e construção civil. Um guia turístico também dá o contexto sobre o que é necessário para entrar no setor com o empreendimento.
O empreendedor ainda recebe sugestões sobre o que pode ser feito na propriedade, plano de negócio e de marketing. Tudo é uma base para levar o projeto adiante, caso seja do interesse dos proprietários. O arquiteto associado à Atuaserra Adilson Giglioli lembra ainda dos cuidados para uma estrutura que é histórica:
— A primeira intenção é reconstruir, de alguma maneira tentar voltar ao original, e isso acaba descaracterizando aquilo, fazendo um falso histórico. Às vezes, faz parte do histórico da edificação o abandono e a destruição daquele tempo, que são as feridas que fica na construção. E é legal manter isso, mostrar que a construção passou por essas etapas, porque ali nas ruínas fica o patrimônio material, que é o que a gente vê. Mas, por trás disso tem um patrimônio imaterial gigantesco, que é a história. A forma que se construiu o moinho, por exemplo, que é uma obra de engenharia fantástica. As pessoas faziam com pouco conhecimento, poucos recursos, com engrenagens super funcionais e criavam indústrias que foram as primeiras aqui da paisagem da imigração.
A decisão de seguir com o plano é da família Anderle, que como mãe e filhos reforçam, "o futuro, só a Deus pertence".