Um idioma que sobrevive ao tempo através da herança familiar, que traz identificação às raízes e que resgata um passado que a História tentou apagar. O Talian, apesar de ter surgido com a vinda dos italianos para o Brasil, há 147 anos, segue na ponta da língua e nas casas de muitos moradores da região da Serra gaúcha. O desafio é mantê-lo vivo para as próximas gerações.
É o caso da família Smiderle, no interior de Nova Pádua, que até estranha falar o português, que, segundo eles, só é falado quando há visita para “não parecer que estão falando mal”. Olindo Smiderle, 86 anos, nasceu no Brasil, assim como seu pai, mas com o avô que atravessou o Atlântico para chegar ao Brasil, cresceu ouvindo o italiano, que logo transformou-se em Talian, até então um dialeto nascido no Brasil para facilitar a comunicação com os nativos e, desde 2014, reconhecido como idioma pelo Ministério da Cultura e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como referência cultural brasileira.
Aqui conheceu Maria, 83 anos, ela também descendente, com quem se casou, teve sete filhos e adotou dois irmãos mais novos que ficaram órfãos. Depois vieram os 18 netos e os sete bisnetos. Todos criados com a cultura italiana presente. Os nove filhos do casal, junto há 65 anos, falam o Talian e agora é a vez dos netos aprenderem com os nonos.
— Eu era pequeno e lembro que, durante o governo de Getúlio Vargas, quem falasse italiano ia preso. Mas eu não sabia falar português, era só o italiano. Quando a gente saía para o mercado, diziam que éramos burros, estúpidos, a pior coisa era ir ao mercado. Passávamos por um colono grosso — conta o aposentado, referindo-se à Campanha de Nacionalização durante o Estado Novo da Era Vargas, um conjunto de medidas para que os imigrantes se integrassem à cultura local, dentre elas, a proibição de idiomas estrangeiros, como o italiano.
Maria olha com orgulho para o neto Fabrício, 15 , enquanto ele fala Talian com a reportagem. Aluno do técnico em agrícola da Escola Família Agrícola de Caxias do Sul (Efaserra), o jovem aprendeu o idioma no convívio diário em casa e, enquanto falava frases na língua, tinha o apoio dos avós, quando surgia alguma dúvida na tradução. Por isso, o adolescente apoia o ensino de língua italiana nas escolas de municípios com descendência.
— Eu acharia bem interessante se houvesse essa mudança, porque até nas regiões com descendência alemã têm essa mudança. Tenho bastante amigos que falam Talian, aqui em casa também. Quando eu estudava aqui em Nova Pádua, dava para falar tranquilamente, agora que fui para a EFASerra só um pequeno grupo que fala o Talian, daí preciso evitar bastante — afirma o estudante.
A nora do casal Marlene Smiderle também defende que o idioma deveria estar na grade curricular dos alunos das escolas da região, para que haja um melhor ensinamento da escrita.
— A maioria são filhos de italianos, poucos são de fora. Eu já falei que aqui poderiam, ao invés do espanhol, colocar o Talian, é mais prático — comenta.
Engana-se quem pensa que o resgate do Talian é restrito ao âmbito familiar. Em Flores da Cunha, o radialista Ivo Gasparin mantém, há 30 anos, programas no idioma. O primeiro, iniciado em 1992, chamava-se Via de Vanti, em tradução livre “saia da frente”, depois veio o Parla Talian (Fala Talian) e, atualmente, o programa de rádio tornou-se uma transmissão ao vivo no Facebook.
Além do radialista, conforme a Associação dos Difusores do Talian (Assodita), outros 60 programas de rádio utilizam o Talian como idioma em todo o Brasil, com predominância no Sul e também Mato Grosso e Espírito Santo.
— Eu sou natural de Veranópolis e até os nove anos eu só falava Talian, depois como entrei para o seminário dos capuchinhos, aí era proibido falar, então fui obrigado a falar o português. Fiquei lá até os 24 anos e depois eu saí, mas sempre com aquela raiz que eu tinha dentro de mim. Os antigos se sentem orgulhosos porque a língua deles está ressurgindo, muitos antes sentiam vergonha, mas hoje é mais aceito. Eu me sinto muito bem falando em Talian, sem problema algum, gosto de falar — declara Gasparin.
Curso para desenferrujar e conhecer
Desde 2021, através de uma parceria entre a Cooperativa dos Produtores de Leite de Serafina (Cooperlate), Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul, Universidade do Centro-Oeste do Paraná (Unicentro) e a Assodita, o curso de extensão universitária de Língua Talian tem objetivo de contribuir para a disseminação e salvaguarda do idioma. O curso gratuito formou a primeira turma em 2021, com 100 vagas, e no próximo dia 16 de março iniciam as aulas para as turmas de níveis I e II, ambas com vagas esgotadas.
— Não temos limitação de idade nem de escolaridade, qualquer pessoa que tenha acesso à internet pode participar dos nossos cursos. Eles são ministrados via plataformas da universidade, sempre é feito um período de matrícula. Menores de idade também podem participar, mas temos que ter um cadastro prévio por um dos responsáveis. O contato pode ser via Centro de Línguas, toda a parte de matrícula é feita online — explica a coordenadora da Unicentro, Loremi Penkal.
Uma das alunas da primeira turma, Daniele Scalia diz que o Talian é parte da sua identidade e que, para manter a prática, conversa com seu pai no idioma.
— Sempre achei o Talian uma língua bonita, sonora e com muitas memorias afetivas. É uma forma de resgatar uma grande parte da identidade dos antepassados de uma significativa parte da nossa população, então o benefício é ainda maior por conta dessa reconexão com a história, as memórias afetivas e até com pessoas falantes nativas que tanto apreciam encontrar gente aprendendo Talian — opina Daniele.
Participante da Assodita e ex-secretário da Cultura de Caxias do Sul, João Tonus informa que a Universidade de Caxias do Sul (UCS) teve papel fundamental para o reconhecimento recebido do governo federal. Isso porque a instituição fez, em 2010, o inventário da língua, que potencializou a luta de pesquisadores do Talian para que fosse reconhecido o idioma.
Ao todo, 16 cidades brasileiras têm o Talian como língua cooficial. Destas, 14 são gaúchas, como Serafina Corrêa, Flores da Cunha, Caxias e Nova Roma do Sul.
— O Talian tem uma história grande, ele foi a língua dos imigrantes e começou a ser escrita em 1924. Ela foi se consolidando como uma língua escrita para também poder se comunicar com os agricultores que não sabiam o português. Nos anos 30, durante o governo Vargas e a segunda guerra, houve a proibição, então piorou ainda mais (a disseminação). Depois até foi liberada, mas desaconselhada, porque “era feio”. Hoje parece que as coisas estão indo para uma política pública mais concreta, mas elas ainda não existem, fala-se ainda sobre políticas compensatórias sobre o crime que o Brasil fez porque foram proibidas essas línguas. E, se teve crime, tem que ser corrigido — finaliza Tonus.