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Um ato iniciado por volta das 11h deste sábado (24), no centro de Caxias do Sul, homenageia o presidente haitiano Jovenel Moïse, assassinado no 7 de julho e sepultado nesta sexta-feira (23). A ação local foi organizada pela Konbit SA, organização que atua em áreas sociais, econômicas e culturais no Haiti e no Brasil. Uma faixa e um quadro com o retrato do presidente foram dispostos na Praça Dante Alighieri, junto à Estátua da Liberdade — monumento que celebra o primeiro centenário da Independência do Brasil —, onde também foram colocadas flores, velas e uma caixa de som tocando músicas do país caribenho.
Ainda antes do meio-dia, pelo menos 20 haitianos que vivem em Caxias do Sul passaram pelo local e ficaram em silêncio diante das fotografias de Moïse. O ato, que também conta com participação da Associação dos Imigrantes Haitianos em Caxias do Sul (ADIHCSUL), ocorre até as 14h.
— Ficamos muito entristecidos com o assassinato. Não se trata de um protesto, apenas uma homenagem — destacou Duckenson Gerome, 26 anos, haitiano que mora há nove anos em Caxias do Sul.
O assassinato de Moïse chamou a atenção do mundo para o país que vive uma instabilidade política desde o fim da ditadura de Jean-Claude Duvalier, em 1986. Até o momento, mais de 20 pessoas foram presas pelo ataque que vitimou o presidente, a maioria colombianos. A polícia afirma que o plano foi organizado por haitianos com ligações fora do país e com ambições políticas.
O contexto de miséria e violência que atinge sobretudo a capital, Porto Príncipe, também é motivo de preocupação para imigrantes como Gerome, que deixou o país em busca de melhores condições de vida e que anseiam trazer o restante da família consigo. Ele conta que esposa está com ele, em Caxias, há quatro anos, mas que o pai — que chegou a vir para o Brasil, mas voltou — e um irmão ainda estão morando em Porto Príncipe.
— É preocupante, mas a nossa esperança é que lá no Haiti eles melhorem as condições para futuramente trazermos nossos familiares pra cá. Hoje o acesso à embaixada está muito difícil e eles cobram valores altos para o encaminhamento do visto — comenta Gerome.
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De acordo com a Coordenadoria de Promoção de Igualdade Étnico-Racial, vinculada à secretaria municipal de Segurança Pública e Proteção Social (SMSPPS), os imigrantes têm procurado ajuda alegando dificuldades de contato com seus familiares. Eles também estão tendo problemas burocráticos referentes à documentação ocasionados pelo contexto de crise e violência que se instaurava no país ainda antes da morte do presidente.
No Centro de Atendimento ao Migrante (CAM), serviço que presta suporte a inúmeras demandas de imigrantes em toda a Serra, principalmente ligadas à regularização migratória, também é desde o início do ano que a situação parece ter ficado mais complicada para a comunidade haitiana.
— Eles têm direito ao acolhimento humanitário no Brasil, mas o acesso ao consulado de lá sempre foi difícil. Temos inúmeros processos em aberto de pessoas que estão aqui e têm dificuldades para trazerem seus familiares. A pandemia agravou bastante isso e, agora, diante dessa desestabilização política e social, a urgência deles em trazerem seus familiares aumenta — afirma Adriano Pistorelo, advogado de migrações do CAM.
De acordo com ele, o consulado chegou a divulgar retomada do serviço de agendamento online após a morte do presidente, porém as tentativas realizadas pelo CAM ficaram sem confirmação.
— Diariamente recebemos este tipo de demanda, para processos de "reunião familiar", o qual imigrantes acolhidos podem requerer, ou mesmo para acolhimento humanitário, mas não estamos conseguindo agendar de jeito nenhum. Estão todos muito preocupados com familiares que vivem lá, que já estavam em situação de vulnerabilidade. Agora, com conflitos de grupos violentos, isso se acentuou muito — completa o advogado.
Demandas em busca de solução
Os migrantes que conseguem chegar ao território brasileiro, segundo Pistorelo, enfrentam dificuldades para a regularização junto à Polícia Federal. Por conta da pandemia, o serviço vem sendo de difícil acesso também a imigrantes que dependem da renovação do Registro Nacional Migratório (RNM) e da Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM). Um ofício publicado pela Defensoria Pública-Geral da União (DPGU) em agosto de 2020 prorrogou os prazos de vencimento de protocolos, carteiras e outros documentos relativos às atividades de Regularização Migratória, sendo válido, pelo menos, até setembro deste ano.
— Tem gente que chegou em setembro do ano passado e ainda está sem documento. Isso aumenta a vulnerabilidade porque dificulta o acesso a aparelhos públicos, à educação, à saúde... Por isso que, além de trabalharmos nessa busca pela regularização, também acionamos a rede e tentamos auxiliar neste esclarecimento para que eles não fiquem desamparados — completa Pistorelo, lembrando que isso não ocorre apenas com imigrantes haitianos:
— A comunidade haitiana sempre foi maior em número de demandas atendidas pelo CAM, mas hoje é superada pelos venezuelanos. É uma comunidade muito grande e vamos verificar aumento de fluxo com certeza, já que a migração é uma realidade mundial e cada vez mais presente na América Latina.
"Queria estar ajudando meu povo", diz refugiado
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A Associação dos Imigrantes Haitianos em Caxias do Sul estima que 550 imigrantes do Haiti vivam hoje na cidade e relata que muitos enfrentam esse entrave. Claudy Zephir, 50, é um deles. Como refugiado político, Zephir mora há nove anos em Caxias. Ele conta que, como trabalhador da indústria, enfrenta dificuldades para manter os quatro filhos que moram com ele e sua esposa, no centro da cidade. A ajuda que envia para os irmãos de 16 e 20 anos que ficaram no Haiti nunca atingiu o valor que ele gostaria e hoje se tornou ainda mais necessária.
— Está muito complicado para o nosso povo agora, estão passando fome e não podem nem sair na rua procurar comida porque está tudo fechado e ficam com medo dos tiroteios. Isso acontece mais em Porto Príncipe, onde eles moram, mas o país todo está afetado — relata Zephir.
Ele conta que iria receber os irmãos no Brasil neste mês, mas os planos acabaram frustrados pela inviabilidade de encaminhar documentos por meio das embaixadas e, até mesmo, de embarcar em um avião, uma vez que os aeroportos também não estão funcionando normalmente:
— Aqui, pelo menos, eles poderiam estudar, trabalhar e conviver comigo, que sou a única família deles.
Zephir deixou o Haiti como refugiado político. Segundo ele, o país era presidido por Jean-Bertrand Aristide quando sua esposa deu à luz o primeiro filho em um hospital de Porto Príncipe. Há 20 anos, ele busca esclarecer o desaparecimento do recém-nascido. À época, buscou a imprensa para denunciar o que tinha acontecido e acabou sendo perseguido, algo que o fez deixar o país rumo à República Dominicana e, posteriormente, ao Brasil.
— Eu ainda tenho vontade de voltar para conseguir justiça. Além disso, agora, queria estar fazendo parte da história e ajudando meu povo. Por enquanto, todos esperam tranquilos por justiça, mas se isso não acontecer, vão para a rua e vai ter guerra. Precisam se manifestar, não podemos aceitar que um presidente seja morto por gente que quer tomar o poder e roubar tudo — avalia o haitiano.
Capacitação para acolhimento
Uma capacitação online e gratuita sobre migração e refúgio será realizada na próxima sexta-feira (30), das 9h às 10h. A ação é promovida pela prefeitura de Caxias do Sul, juntamente com a Fundação de Assistência Social (FAS), Projeto Mão Amiga e Centro de Atendimento ao Migrante (CAM). Adriano Pistorelo, advogado de imigrações do CAM, abordará questões sobre acolhimento, integração social e as diretrizes e compromissos elencados no Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular. A transmissão ao vivo será pelo canal da Associação Educadora São Carlos (Aesc), mantenedora do CAM, no YouTube.