Em 1995, quando chegou ao Brasil, o pesquisador Dominic Barter era um mero estrangeiro viajante empolgado em testar ideias sociológicas experimentais em periferias cariocas. Mais de 20 anos depois, 18 dos quais instalado de forma definitiva no país, o britânico é considerado a maior referência no Brasil no tema práticas restaurativas. Sem sequer ter o Ensino Médio completo, ele foi o introdutor do conceito de Comunicação Não-Violenta (CNV) e até hoje é chamado para intermediar círculos de pacificação de conflitos em diversos países do mundo.
Leia mais:
Justiça considera ilegal a greve dos médicos de Caxias do Sul
Vereadores de Farroupilha conquistam mais de R$ 2,7 milhões para reerguer Hospital São Carlos
Visitando Caxias do Sul nesta semana a convite do juiz Leoberto Brancher, Barter promoveu um painel sobre Justiça Restaurativa, comunicação não-violenta e inteligência emocional na Penitenciária Estadual de Caxias do Sul. Antes de deixar a cidade, ele conversou com o Pioneiro. Na entrevista, relatou a trajetória do conceito de Justiça Restaurativa no país e os desafios para, segundo ele, "corresponder a seriedade com que as instituições brasileiras passaram a enxergar o sistema restaurativo" para a resolução de conflitos. Confira abaixo trechos da entrevista:
Pioneiro: Embora já tenha conquistado espaços importantes, por que a justiça restaurativa ainda é um sistema subestimado em algumas esferas?
Dominic Barter: É um sistema simples e ancestral, que muitas vezes não consegue encontrar espaço em um mundo com conflitos ininterruptos. Por isso, a sociedade acabou terceirizando essa resolução de conflitos criando uma instituição para cuidar especificamente disso. O Poder Judiciário cuida até um certo nível de complexidade, e o número de vezes que precisamos de espaço dedicado para cuidar da necessidade de justiça vai muito além da capacidade que o Judiciário tem, quer ter ou consegue ter. Então, a gente precisa entender que estão faltando espaços sociais, comunitários. Espaços onde precisamos conhecer o conflito, pois ele precisa existir. Por exemplo: quando construímos uma casa, não precisamos pedir um quarto. O engenheiro já sabe disso. Por quê? Porque é natural do ser humano. Cansamos e precisamos de um lugar para repousar. Não haveria motivo para construirmos um quarto todos os dias. Quando o sentimento e a necessidade andam juntos, a gente pensa sistematicamente. E é isso que falta. O conflito existirá sempre. Portanto, precisamos construir espaços permanentes dedicados a promover diálogos e resolver essas situações.
A própria ideia da necessidade de existência do conflito é uma noção que não é muito compreendida pela sociedade...
Sim. Uma vez, um aluno de uma escola de São Paulo sugeriu criar um "espaço de briga" e todos à sua volta riram. Mas é uma ideia maravilhosa. A partir do momento que reprimimos algo que nos incomoda, isso nos causa dor e o próximo passo é a violência, seja contra alguém próximo ou dentro de nós mesmos, o que muitas vezes é pior e mais perigoso. Afinal, quando se acumula a insatisfação, quando você falar qualquer coisa, isso vai ser o gatilho para explodir. Portanto, é preciso se compreender que o conflito é necessário em qualquer relação que vale a pena.
Como o senhor avalia a maneira como a Justiça Restaurativa é aplicada no país e as perspectivas para o futuro?
Cerca de 40 países hoje usam o sistema restaurativo de maneira consolidada. Desses, participei da implementação em 23. O que eu noto é que superamos a fase de precisar explicar ou argumentar aos governos e autoridades os motivos para que o sistema seja adotado. Não é mais o início. Precisamos refletir o próximo passo. E também repensar alguns aspectos que saíram do controle. É um momento promissor para o nosso trabalho, mas com certos perigos. Perdemos alguns princípios de vista e agora temos de começar de uma forma mais firme. Eu vejo, tanto no Brasil quanto em outros países, o uso do termo práticas restaurativas para descrever coisas maravilhosas, mas que não precisam dele. São práticas circulares de diálogo que tem razão o suficiente para existir. Associar ao termo não é necessário e não é bom para a gente. Sei de atividades que ensinam ioga para crianças nas escolas, apresentando-se dentro do contexto de Justiça Restaurativa. Ioga tem uma tradição milenar própria, não precisa da JR para se justificar.
Ainda existe resistência por parte de alguns governos e do Poder Judiciário?
Com certeza. Mas é importante que haja. Nosso sistema, se for analisado em termos conceituais, é mais antigo e profundo que qualquer sistema político, mas lidamos com algo sério demais que não pode estar sujeito à qualquer ideia "bonitinha". Acho justo sermos questionados, afinal, precisamos ter segurança necessária para cuidar da nossa comunidade, não dá para brincar. Concordo quando exigem que não só tenhamos um papo bonito, mas que consigamos entregar resultados. Temos melhorado muito por sermos desafiados por essas críticas. Temos muitas pesquisas que validam as práticas restaurativas, embora poucas com validez científica necessária. Foram 40 anos lutando para a Justiça Restaurativa se consolidar. Agora, precisamos comprovar e ampliar a sua efetividade para corresponder a essa seriedade que as instituições estão nos tratando.
Como fazer isso?
É preciso fazer um trabalho específico em cada núcleo. Podemos usar os modelos de práticas pré-concebidos, mas só até entendermos a realidade daquele conflito. Não precisamos nos limitar a uma metodologia ou outra. O que observo é que o sistema restaurativo precisa buscar a chama que foi perdida. A base que se perdeu naquele bairro ou naquele grupo, não necessariamente um líder comunitário, uma escola ou um tribunal e, sim, aquele elemento mais marginalizado, mas ainda vivo e escondido. Essa é a chama das comunidades, que precisamos encontrar, nutrir e cuidar. Trazer de volta para o centro da vida comunitária, pra dar vida, luz, e gerar o calor para sustentar tudo ao redor.
Em que momento você se tornou convicto da eficiência do sistema restaurativo?
Foi em um momento em que me frustrei. No ano 2000, visitei uma casa de acolhimento no Rio de Janeiro como sempre fazia e aparentemente tudo transcorreu como o previsto. Cerca de duas semanas depois, ocorreu o sequestro do ônibus 174, no qual aquele jovem (Sandro Barbosa do Nascimento) acabou sendo morto pela polícia após os desdobramentos trágicos do evento (uma mulher foi morta no confronto entre o sequestrador e a polícia). A questão foi que reconheci Sandro como um dos jovens que encontrei naquela entidade. Me senti frustrado em não ter ajudado ele, inclusive isso me motivou a voltar para a Inglaterra. Lá, no entanto, percebi que poderia ajudar outras pessoas. Foi aí que decidi voltar com as ideias mais organizadas e começar a aplicá-las. Há quatro anos, fui chamado para realizar a mediação de conflito durante uma rebelião em uma unidade prisional em Campinas, situação que já durava alguns dias. Já haviam colocado fogo em um pavilhão, a tropa de choque cercou o local e havia uma tensão política pela proximidade de eleições. Por coincidência, havia quatro pessoas participando de uma capacitação comigo e decidimos ir em grupo. Apesar da resistência da diretora da casa prisional, ficamos seis horas lá dentro realizando pré-círculos. Após eles entenderem que estavam sendo compreendidos, juntamos vários presos e montamos sistemas enormes de círculos. O resultado foi incrível e não consegui evitar de pensar: "caramba, se fizemos isso com quatro, imagina com 40 ou 120 pessoas". Precisamos crescer.
3ª Semana Restaurativa
Terminou na sexta-feira (24) à noite, com um jantar no Restaurante Don Claudino, a programação da 3ª Semana Restaurativa em Caxias do Sul. Durante a semana, também ocorreu a formatura da sexta turma de voluntários de paz. Os formandos receberam o certificado pela UCS como facilitadores de círculos de construção de paz em aplicações conflitivas. O foco da formação da turma de 17 pessoas está voltado à prevenção da violência e à construção de vínculos familiares, escolares, entre equipes de trabalho e comunitários.
O Programa Municipal de Pacificação Restaurativa — Caxias da Paz surgiu a partir da união entre o Judiciário, a prefeitura, a Universidade de Caxias do Sul (UCS) e a Fundação Caxias. Caxias do Sul possui cerca de 700 facilitadores que servem como referência nacional em política pública de estratégia de pacificação social para redução dos índices de violência e criminalidade.