Malu Galli é daquelas atrizes que abraçam papéis carregados de camadas e profundidade. Não importa se é drama ou comédia, para televisão ou cinema: "se a história for boa e a personagem me tocar, aquilo me compra de cara".
Foi assim que a carioca de 53 anos mergulhou no remake de Vale Tudo, um dos maiores clássicos da teledramaturgia brasileira, no qual dá vida a Celina Junqueira, originalmente interpretada por Nathalia Timberg. Mais colorida, mais ativa e com um arco próprio mais robusto, como define, a personagem ganha novas nuances sob a atuação sensível de Malu.
A atriz recebeu com entusiasmo o convite feito pelo diretor artístico Paulo Silvestrini para integrar o elenco recheado de estrelas.
— Foi como entrar para a Seleção Brasileira! — brinca.
Apesar da aparência gentil e acolhedora, Malu afirma que Celina está longe de ser uma mulher submissa. Pelo contrário, ela sabe lidar com a temida irmã, Odete Roitman (Debora Bloch), com inteligência e diplomacia. Ainda assim, a personagem despertou na atriz uma inquietação:
— Hoje em dia, é difícil entender essa mulher que abriu mão da própria vida para cuidar dos filhos da irmã. Ficou viúva muito jovem, nunca mais se casou, não trabalha. A gente se pergunta: por que ela sacrificou tanto? Poderia ter seguido com sua vida e incluído os sobrinhos nela. Há uma manipulação velada (de Odete Roitman) que ela não confronta, mas à qual sucumbe de alguma maneira. É uma personagem nada óbvia.
É esse tipo de personagem que move os quase 33 anos de carreira de Malu. Ela começou no teatro e no cinema, até ganhar, aos poucos, projeção nacional ao também migrar para a televisão.
Desde então, destacou-se em diferentes papéis, como a psicanalista Lúcia, na série Queridos Amigos (2008); a socialite Maria Lídia, em Amor de Mãe (2020); e Violeta, que fazia parte do núcleo protagonista de Além da Ilusão (2022), novela das 18h. A personagem, aliás, retornou recentemente em uma participação especial em Garota do Momento, ao lado de Eugênio (Marcello Novaes) — casal que conquistou o público.
— A Violeta era uma mulher que enfrentava tragédias desde o início — perda da filha, marido esquizofrênico, violência doméstica, um amor proibido. Mas também havia um tom de comédia romântica. O personagem virou um acontecimento, com fã-clube e tudo, o que foi muito gratificante — relembra atriz, que define este papel como um divisor de águas na sua carreira.
Entre outros desafios de uma trajetória consolidada nos palcos e nas telas, Malu também interpretou personagens significativos em diversos filmes – como O Xangô de Baker Street (2001), de Miguel Faria Jr., em que viveu a compositora e musicista Chiquinha Gonzaga; o curta-metragem Areia, que lhe rendeu o Kikito de Melhor Atriz no Festival de Cinema de Gramado de 2008; e Propriedade (2023), terror dirigido por Daniel Bandeira, elogiado pelas questões sociais abordadas na narrativa.
Celina não é uma personagem de fácil leitura. À primeira vista, parece ser apenas a tia doce, que substitui a mãe. Mas, ao mesmo tempo, ela não enfrenta Odete de maneira combativa, acaba se opondo à irmã por outros caminhos
MALU GALLI
Atriz, produtora e diretora
E tem mais vindo por aí: Malu também estará no próximo filme de Miguel Falabella, Querido Mundo, ao lado de Du Moscovis e Marcelo Novaes, com estreia prevista para o fim deste ano.
— Essa é a maior delícia de ser atriz: poder transitar em universos totalmente diferentes. Você experimenta o que a profissão tem de melhor, que é esse estado permanente de mudança, de ser um empréstimo de si mesma a outros mundos. Sempre que começo um novo trabalho, busco entender o que o projeto exige de mim, que tipo de transformação será necessária. Gosto de contar histórias, independentemente do que seja — destaca.
Discreta e tranquila
Casada há 26 anos com o artista plástico mineiro Afonso Tostes, com quem tem seu único filho, Luiz, de 24 anos, a atriz atribui a durabilidade da relação à cumplicidade de sempre, ao respeito e, claro, à diversão a dois:
— É manter a parceria, manter os planos em comum, se divertir junto, continuar tendo prazer um com a companhia do outro. E respeito e escuta. Acho que é basicamente isso.
Além disso, a artista também prioriza uma vida discreta e longe dos holofotes:
— Gosto de estar com a minha família, meus amigos, em contato com a natureza. Valorizo momentos simples e prazerosos. Não sou de balada nem de grandes eventos, prefiro programas menores, com poucas pessoas, é assim que recarrego minhas energias.
Em entrevista a Donna, Malu Galli fala mais sobre sua personagem em Vale Tudo, a relação com a internet, alguns momentos marcantes da carreira e também reflete sobre os desafios de ser mulher no meio artístico.
Confira a entrevista com Malu Galli
Como surgiu o convite para interpretar Celina em “Vale Tudo”?
Recebi o convite no final de setembro, por telefone, do diretor artístico Paulo Silvestrini. Foi uma surpresa enorme, não esperava mesmo. Já havia trabalhado com ele em Malhação – Viva a Diferença (2017–2018), um projeto que até ganhou um Emmy. Depois veio o spin-off As Five (2020), então já tínhamos uma parceria bacana. Ser convidada por ele para esse projeto foi uma grande alegria.
Você assistiu à versão original? Quais são suas lembranças e impressões da novela?
Eu tinha 16 anos na época e não assistia todos os dias, adolescente vive na rua, mas lembro que me marcou bastante. Quando soube que haveria um remake, pensei: "Meu Deus, que incrível". Achei sensacional, mas nunca imaginei que seria chamada. Então foi uma alegria.
Qual a importância da Celina na família Roitman? O que ela representa para os sobrinhos e para o público?
Celina não é uma personagem de fácil leitura. À primeira vista, parece ser apenas a tia doce, que substitui a mãe. Mas, ao mesmo tempo, ela não enfrenta Odete de maneira combativa, acaba se opondo à irmã por outros caminhos. Sua forma de proteger a Heleninha (Paolla Oliveira) e o Afonso (Humberto Carrão) e de lutar pelas coisas que acredita é muito particular.
Ela também tem um lado engraçado: gosta de gastar, o que a Odete tenta usar como controle, mas não se deixa enredar. Ela busca a diplomacia do jeitinho dela e tem uma inteligência emocional para lidar com a irmã tóxica.
O que pretende trazer de diferente para a Celina?
Elas já aparecem naturalmente, por quem eu sou e pela estética da nova Celina. A versão original era mais clássica e senhoril, o que fazia sentido na época. A atual é mais solar e vibrante. Tem um grande interesse por artes plásticas, o que se reflete também nas roupas.
Além disso, a nova Celina é mais ativa e tem interesses para além da família. Ficou mais complexa. Algumas dessas características já estavam sugeridas na primeira versão, e a Manuela Dias (autora da novela) agora jogou luz sobre elas.
Você já conversou com Nathalia Timberg (atriz que interpretou Celina na versão original)?
Estamos organizando um encontro, que deve acontecer em breve. Quero conversar com ela sobre várias coisas, além da novela. Nathalia é uma artista fundamental para a cultura brasileira. Aos 95 anos, segue ativa, ela é um verdadeiro farol.
Precisamos mudar esse olhar – hoje, a gente acha mais natural lidar com procedimentos estéticos na tela do que com uma ruga, uma expressão envelhecida, e isso é muito triste
MALU GALLI
Atriz, produtora e diretora
Como está sendo contracenar com Debora Bloch? Vocês interpretam irmãs muito diferentes em uma família disfuncional. Tem sido desafiador?
Já trabalhamos juntas e somos amigas na vida real, o que traz uma complexidade boa para a cena. As duas personagens são extremos opostos, quase como Yin e Yang, numa relação simbiótica. Essa simbiose está mais evidente nessa nova versão – uma se alimenta da outra emocionalmente.
Odete é uma figura tóxica, autoritária e manipuladora, o que é um prato cheio para a Debora (Bloch) e para nós que contracenamos com ela. Odete sempre tenta vencer, mas acaba perdendo em algum nível. O texto da Manuela é muito rico, e a história do Gilberto Braga (um dos autores da versão de 1988 ao lado de Aguinaldo Silva e Leonor Basséres) é simplesmente exemplar. Cada cena é um deleite.
Quais foram os maiores desafios da sua trajetória? Houve algum papel que tenha sido um divisor de águas?
Além da Ilusão me marcou por ser minha primeira protagonista. A Lídia, de Amor de Mãe, foi meu primeiro grande papel numa novela das nove, e isso tem um peso enorme, traz visibilidade, tanto dentro da emissora quanto para o público. A personagem trazia a temática do alcoolismo, era uma socialite emocionalmente perdida que amadurecia ao longo da trama. Foi uma experiência muito rica.
Outra personagem transformadora foi a Mary, em Renascer. Mesmo sendo uma participação pequena, teve uma grande repercussão por tratar da transfobia (ela era mãe da Buba, uma mulher trans na trama). Me senti muito honrada. E isso mostra que não é sobre o tamanho do papel, mas sobre o impacto que ele tem.
Por ser atriz, a imagem é uma ferramenta importante no seu trabalho. Como você lida com a pressão estética?
Sou vaidosa, como acho que uma atriz precisa ser – lidamos com a imagem, é natural prestar atenção nisso. Mas não sou obcecada. Tento manter o equilíbrio, fazer dentro do que acredito e da minha autenticidade.
É difícil, especialmente para as mulheres, por causa da cobrança constante: não podemos envelhecer, temos que estar sempre lindas. Isso é muito cruel, especialmente no Brasil. É preciso ter uma cabeça forte para entender que o tempo vai passar e deixar marcas no rosto, no corpo. A questão é cuidar com consciência, respeitando seus limites.
Admiro muito mulheres que estão assumindo os cabelos grisalhos, as rugas, que estão se posicionando contra esses padrões impostos. Precisamos mudar esse olhar – hoje, a gente acha mais natural lidar com procedimentos estéticos na tela do que com uma ruga, uma expressão envelhecida, e isso é muito triste.
Hoje em dia, as redes sociais se tornaram uma vitrine para os atores. Como é sua relação com a internet?
Procuro ser autêntica e compartilhar coisas que realmente me interessam e possam interessar ao meu público. Faço tudo sozinha, não tenho equipe, então preciso respeitar meu ritmo. Mas sei que a presença nas redes virou mais uma ferramenta de trabalho.
Produzir conteúdo é algo que se impôs de repente. Parece que, para existir, é preciso estar ali, interagindo o tempo todo. É exaustivo, porque exige que você seja o produtor de si mesmo, além de artista. Felizmente, nunca recebi ataques diretos. O que chega até mim é sempre muito positivo e afetuoso. Tem sido uma troca bonita com os seguidores.
Como é sua relação com o Luiz, seu filho? Você se vê como uma mãe mais protetora ou liberal?
Sou um pouco das duas coisas. Sempre fui muito protetora por temperamento, mas também procuro ser liberal, até por conta da minha profissão e visão de mundo. O Luiz, no entanto, é muito tranquilo. Foi um adolescente sereno, não me exigiu grandes esforços para ser liberal. Muito diferente de como eu fui na idade dele.
A maior lição da maternidade é entender que seu filho não está aqui para realizar suas expectativas. Ele é um ser independente, com seus próprios caminhos. E isso é um aprendizado constante, principalmente sendo filho único.
A sensação de que tudo pode ruir está sempre presente, mas é preciso olhar para trás e reconhecer: “Cheguei até aqui.” E isso não é pouco
MALU GALLI
Atriz, produtora e diretora
Você é adepta do candomblé. Como aconteceu essa aproximação com a religião?
Minha família é católica, mas nunca fui praticante. Não tinha contato com religiões de matriz africana até começar a dirigir uma tragédia grega. Nos estudos sobre a origem da tragédia, acabei mergulhando nas religiões tradicionais e percebi muitas conexões com o candomblé — os ritos, os arquétipos, as forças da natureza.
Fiquei curiosa e fui a uma festa de candomblé com minha equipe e elenco. Fiquei encantada. Entendi de onde vem a linguagem, as representações, a riqueza cultural. O candomblé é mais que uma religião, é uma visão de mundo. Senti que me encontrei ali, sem saber que estava procurando. Desde então, nunca mais deixei de frequentar. Foi um encontro espiritual muito bonito.
Qual foi o maior aprendizado da sua carreira até hoje?
Tenho muito orgulho da minha trajetória, construída com muito esforço, passo a passo. Fiz muitos testes, tudo na base do trabalho e da dedicação. Não gosto dessa ideia de "entregar", como se tudo estivesse no automático.
O maior aprendizado foi confiar mais em mim, fortalecer minha autoconfiança. No início, era muito insegura — não com meu talento, mas com o mercado, com a solidão da profissão. Você precisa acreditar no seu valor, lembrar do que conquistou, mesmo nos momentos difíceis.
A sensação de que tudo pode ruir está sempre presente, mas é preciso olhar para trás e reconhecer: “Cheguei até aqui.” E isso não é pouco.