
Imagine que você pudesse pausar suas contas para ganhar fôlego, quitar as dívidas essenciais e se reerguer financeiramente. De forma simplificada, é esse o conceito de recuperação judicial (RJ), um mecanismo legal de reestruturação e reorganização de empresas em crise — à beira da falência — que completa 20 anos.
Os empresários que optam pela RJ, em geral, têm dívidas com bancos. Mas há casos de débitos trabalhistas ou, ainda, salários em atraso. A legislação não abrange, entretanto, os CNPJs que descumpriram obrigações com o Estado, como impostos, um cenário que exige outra solução.
Decisões de gestão equivocadas, discussões societárias ou a passagem de uma geração para outra no comando de empresas familiares estão entre as justificativas para a adesão à RJ. Aliado a elas, chegam ao escritório da advogada caxiense Aline Ribeiro, especialista no tema, insolvências empresariais geradas a partir de eventos externos:
— O Brasil tem, historicamente, uma economia instável, o que afeta as empresas. Inflação alta ou baixa, juros altos ou baixos, não temos uma conduta linear em termos de economia, fora a questão tributária. E, ainda, intempéries de tempo, como a pandemia e, depois, as enchentes. Para a empresa que já vinha com dificuldades é pior ainda.
De acordo com Aline Ribeiro, que integra a Comissão Especial de Falências e Recuperação Judicial da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RS), as dívidas estão relacionadas a diferentes aspectos, desde geração de caixas e empréstimos até grandes investimentos para compra de máquinas ou expansão fabril.
Hoje, ela atende em torno de 15 casos de RJ. Estima, ao todo, um passivo de R$ 5 bilhões entre clientes do comércio, indústria, agrícola e serviços. Conforme dados da Serasa Experian, 2.273 CNPJs recorreram ao Judiciário em todo o país para acessar ao mecanismo em 2024, ano de recorde histórico no número de pedidos de RJ.
Ninguém quer sua companhia em recuperação judicial, mas ela está à disposição caso necessário e propõe benefícios, defende a advogada:
— O empresário ganha um respiro com a RJ. É como se ele estivesse começando de novo: sem dívidas, mas sem dinheiro e sem crédito. O ônus é que ele é obrigado a cumprir tudo em dia, sob pena de falência.
O tempo em que a empresa fica em recuperação judicial varia conforme o porte do negócio e o cenário vivido. Pode levar cinco anos para resolução em casos menores, mas Aline Ribeiro conta que possui clientes com RJ ativa desde 2017.
O mecanismo é deferido pelo juiz, após o empresário ingressar com o pedido na Justiça, mas a RJ é concedida apenas na assembleia de credores, com a aprovação do plano de recuperação judicial, afirma a especialista:
— Ao final de dois anos, se a empresa está cumprindo todas as obrigações, a RJ é levantada, como tecnicamente falamos. E aí independentemente que ela tenha dez anos para pagar a dívida, já não estará mais em recuperação, não fica mais sob a espada da falência. As empresas geralmente ficam bem. O começo é difícil, o empresário demora para tomar a decisão. Mas, conforme vai passando, eu ouço dos clientes: "Por que eu não fiz antes a RJ?".
Crescimento expressivo em meio a RJ
A Keko Acessórios, fundada em Caxias do Sul, supera a recuperação judicial com resultados acima dos planejados. Durante quase sete anos em RJ, deflagrada em setembro de 2018, a companhia cresceu 170% e projeta um faturamento de R$ 360 milhões em 2025 — 8% a mais que o último exercício. Hoje, assegura aproximadamente 500 empregos diretos.
A empresa familiar, que atua no mercado de personalização de picapes e veículos leves, divulga investimentos na ordem de R$ 30 milhões no biênio 2024/25 para ampliação da estrutura fabril e aquisição de novos equipamentos e tecnologias.
Para vencer a RJ e, mais do que isso, colocar a firma nos trilhos do desenvolvimento novamente, os proprietários citam como estratégias: horizontalização da gestão, enxugamento de projetos, reorganização mercadológica, planejamento financeiro e tributário e investimentos em inovação e em produtos com alto valor agregado.

— O primeiro ponto é admitir o seu novo tamanho, não tem como crescer com dificuldade financeira. Começamos a ajustar as contas, diminuímos a folha de forma natural, enxugamos projetos em desenvolvimento e fizemos uma gestão mais verticalizada. O time que "virou" a Keko é o que estava em 2018. No segundo ano, então, voltamos a incentivar a área de mercado e investir — contextualiza o presidente executivo da companhia, Leandro Scheer Mantovani.
A Keko recorreu à medida para renegociar dívidas que alcançavam R$ 75,5 milhões. Operacionalmente saudável e com crescimento médio de 20% ao ano, em 2009 a empresa iniciou um investimento que chegou a R$ 100 milhões em uma planta fabril modelo em Flores da Cunha — a atual sede.
O aporte acompanharia o crescimento do negócio, entretanto, o custo do endividamento saltou com o avanço da taxa Selic de 7,5% para 14,5% no período, aponta Mantovani. De 2015 a 2018, antes da RJ, a Keko tentou, mas sem sucesso, renegociações coletivas com bancos.

Em 2018, a pressão na companhia era grande com a greve dos caminhoneiros. Sacramentou a crise uma redução de receita de R$ 20 milhões ocasionada pelo cancelamento de um projeto com uma montadora.
— Esse fato culminou na decisão estratégica de entrar com a medida jurídica de recuperação — afirma o presidente executivo da Keko.
A marca é reconhecida em mais de 45 países nos cinco continentes e fornece para 12 montadoras.
Confira as principais etapas da recuperação judicial:
- Ingressar com pedido na Justiça, descrevendo causas da crise e informando credores.
- Juiz defere o processo de RJ.
- Começam medidas a favor do empresário, como o stand-by de todas as dívidas, por 180 dias (seis meses), no mínimo. Processos judiciais são suspensos.
- Inicia a elaboração do plano de recuperação judicial, com discussões entre o empresário, consultorias especializadas, credores e advogados. A Justiça fiscaliza. O plano precisa ser entregue em 60 dias após o deferimento, segundo a advogada Aline Ribeiro. É esse documento que vai definir, entre outras medidas, em quanto tempo será paga a dívida.
- Ocorre a assembleia de credores para aprovar ou rejeitar o plano de recuperação judicial.
- Inicia o cumprimento do plano e pagamento da dívida.
- Em dois anos, há a possibilidade da RJ ser levantada e a empresa ser livrada da falência. A dívida, contudo, continua sendo paga.
* O administrador judicial (AJ) é um profissional de confiança do juiz, nomeado para fiscalizar o processo. É a autoridade máxima na assembleia de credores.
* Despesas do processo de recuperação judicial ficam por conta da empresa. Entre outros gastos, existem os custos judiciais, a remuneração do AJ e honorários de advogados e assessorias.