Os dedos deslizam pelo teclado e dão início à transcrição de uma história sobre viagem. Enquanto as frases se formam para compor o enredo de uma obra literária, o imaginário flutua entre acontecimentos envolvendo furacões e tempestades em alto mar. Foi transcrevendo a história de um vizinho que tinha acabado de retornar para a terra firme que Leonel Toledo, na época com 15 anos, sentiu brotar dentro de si o sonho de ser velejador. Levou um certo tempo, mas o desejo se concretizou.
Agora, aos 39 anos, Toledo se dedica a transformar em livro a própria aventura. No quarto de um hostel em Caxias do Sul, ele escreve o relato dos 42 dias em que viveu sozinho, encarando os desafios em alto mar, à bordo de um barco a vela, navegando por diferentes países da Europa.
Na transição entre a adolescência e a vida adulta, o contato com o vizinho aventureiro acabou se perdendo. Gradativamente, o interesse de conhecer as terras distantes daquela antiga história foi adormecendo. Cerca de vinte anos depois, Toledo reencontrou o vizinho pelo Facebook. Eles então voltaram a se falar e, a partir de uma conversa de quatro horas, aquele sonho, que estava hibernando, foi despertado com uma intensidade de tal forma que mobilizou Toledo a planejar uma guinada em sua vida.
— Nós conversamos por telefone e ele perguntou por que eu ainda não tinha saído para dar uma volta no mundo de veleiro. E eu pensei que deveria fazer isso. Aí me preparei, em menos de um ano e meio, para fazer a minha viagem — lembra.
Ex-militar da Aeronáutica, Toledo estava trabalhando como gestor de pós-vendas da BMW em Porto Alegre quando pediu demissão para dar início a aventura, que começou em junho de 2023. Quando tomou a decisão da viagem, não imaginava as experiências que viveria por entre os mares da Noruega, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Bélgica, França e Inglaterra.
Ainda em Porto Alegre, Toledo fez uma aula prática em uma lancha no lago Guaíba e se aprofundou na teoria para fazer a prova escrita da Marinha. A partir disso, recebeu a habilitação de mestre-amador, que permite as pessoas a conduzirem embarcações entre portos nacionais e internacionais.
— Minhas aulas práticas foram em uma lancha, eu só tive a experiência no veleiro quando aluguei um por uma hora e fui conduzindo. Aí tive a oportunidade de abrir a vela, regular, mudar de um lado para o outro e essa foi toda a experiência antes de embarcar na minha viagem. Então, foi uma única hora de aula prática com o veleiro. Quando fui para o mar eu sabia que não tinha a chance de errar e nem a oportunidade de falhar — conta o velejador.
Entre a calmaria e o mar agitado: os desafios da travessia
A Noruega foi o ponto escolhido para começar a viagem, após pesquisar por preços e opções de embarcações. Depois de chegar no país e encontrar o modelo que o acompanharia no percurso, o velejador começou os últimos preparativos para entrar no oceano. A viagem teve início em meio aos fiordes, faixas de mar entre montanhas íngremes que formam uma das paisagens norueguesas mais famosas.
– Comprei o barco, fiz a troca de corrente, de corda, de âncora, fiz toda a preparação e iniciei ainda por meio dos fiordes. Era muito tranquilo, uma navegação leve, um ventinho fraco, tudo lindo, perfeito e maravilhoso. No terceiro dia que eu saí do meio dos fiordes e peguei o mar aberto, aí a coisa mudou – lembra.
As ondas de cerca de seis metros de altura acabaram sendo mais fortes do que o velejador e, depois de baterem na lateral da embarcação, arremessaram Toledo dentro da água. Era ainda o terceiro dia de viagem e, em pelo menos mais duas situações, ele acabou sendo jogado para fora do barco por causa do impacto das ondas.
— No quinto dia eu capotei com o veleiro. Caí de cima de uma onda com o barco, parecia uma panqueca caindo na água (brinca). O vento era muito forte e eu não tinha um ângulo melhor de navegação porque, na minha esquerda, tinha um rochedo e o vento já estava muito forte. Quando caímos eu pensei “agora quebrou meu barquinho”, mas o coitado foi muito valente e consegui regular as velas e colocar ele em uma condição um pouco melhor — recorda Toledo.
Ao longo do trajeto pela Noruega, o velejador foi acompanhado pelo Sol da Meia-Noite, fenômeno onde a estrela fica acima do horizonte e, mesmo à noite, não se põe. Apesar de atrair turistas para apreciar os dias infinitos, que são comumente vistos entre maio e julho, o fenômeno acompanhou o velejador por dias e fez Toledo perder a noção de horário. Em diferentes momentos, ele arriscava tentar dormir com um tecido cobrindo o rosto, para driblar a presença constante da claridade.
— Já era quase verão, mas ainda tinha neve no topo das montanhas e muita chuva, muito frio. Cheguei a pegar temperaturas de dois graus. Não estava nevando porque era primavera, já quase verão, mas ainda era frio e quando respingava água no barco era gelada. Eu precisei comprar um casaco reforçado para continuar a viagem — conta o velejador.
Encontros com outros viajantes pelo caminho
Tendo Londres, na Inglaterra, como destino final, Toledo seguiu pela Dinamarca, Holanda, Alemanha, Bélgica e França antes de encontrar a ilha da Grã-Bretanha. Para seguir viagem e poder cozinhar em segurança, buscava atracar o barco em alguma cidade e aproveitar para conhecer os diferentes lugares que surgiam no caminho.
O velejador ficava, em média, dois dias em cada cidade. Em uma das paradas, já em solo britânico, teve uma amostra de empatia e bondade de um desconhecido.
— Era umas 17h30min e eu estava atracando em Dartmouth quando um senhor já de idade, provavelmente uns 70 anos, fez sinal indicando onde eu poderia parar, pegou os cabos do meu barco, amarrou na frente e atrás, voltou no barco dele e trouxe uma taça de vinho para nós tomarmos e brindarmos porque, como ele disse, eu tinha chegado em segurança — lembra Toledo.
Entre as principais lembranças da viagem solo, Toledo cita o encontro com outros brasileiros e a amizade com pessoas de outras nacionalidades. E, assim como recebeu ajuda, pôde retribuir em diferentes momentos. Segundo o velejador, além da conexão com o outro, ele pôde se conectar consigo mesmo e aprender a importância de apreciar todos os momentos.
— Um dia eu comecei a prestar atenção nas gaivotas comendo peixes e foi surpreendente. Uma gaivota pegou uma craca (crustáceo semelhante aos siris e camarões) e levantou voo. Quando chegou em uma altura, ela largou a craca nas pedras e a craca quebrou, assim ela conseguiu comer. Às vezes a gente está tão preocupado com o que vai acontecer amanhã ou semana que vem que não prestamos atenção no voo das gaivotas, é incrível — compara o velejador.
Chegada em Caxias e os próximos sonhos
Os caminhos de Toledo com a Serra gaúcha se encontraram a partir de amizades cultivadas no antigo trabalho, como gestor de pós-vendas. Tendo contato com empresários da Via Bella Veículos, empresa caxiense que comercializa veículos importados, Toledo contou sobre ter pedido demissão do antigo emprego para dar início à sua aventura. A partir daí, o velejador foi apresentado para o proprietário da também caxiense Time Line, que confecciona roupas para homens.
– O Fernando (Luis Fernando Generoso), proprietário da Time Line, ficou encantado com a minha viagem e quis fazer as roupas que eu iria usar durante o percurso. Foi tudo na base da amizade mesmo. As roupas foram criadas para mim com o pedido único. Quando eu tirasse umas fotos que eu marcasse a empresa (na postagem). Aí foram feitas camisetas, moletons e tudo o que usei na viagem – explica Toledo.
Por conta da parceria pelos mares e em terra firme, quando retornou ao Brasil Toledo foi convidado pelo amigo caxiense para voltar à Serra gaúcha. Com a experiência de gestor, acabou conseguindo uma vaga em uma importadora da cidade, onde está trabalhando atualmente, como consultor automotivo.
Entre a responsabilidade profissional e as novas amizades, ele escreve o livro contando sobre os 42 dias em alto mar. Com previsão de terminar o registro da primeira grande aventura no fim de janeiro, o velejador já avista os próximos sonhos que pretende viver. Segundo ele, o primeiro é percorrer o caminho de Santiago de Compostela, caminhada de cerca de 800 km entre a cidade de Saint-Jean-Pied-de-Port até a Galícia, na Espanha.
O segundo é voltar para o oceano com o barco a vela, que atualmente está atracado em Plymouth, na Inglaterra. A nova viagem deve ser nas águas do Mediterrâneo.
— Faltam palavras para dizer o quão maravilhoso foi realizar esse sonho, o quanto eu incentivo as pessoas a realizarem os seus sonhos. Não precisa ser uma “loucurada” como eu fiz, porque é perigoso (risos), mas qualquer sonho, uma viagem ou um passeio de mochila, eu digo para as pessoas: vai. Vai amanhã. Porque se tu pensar que vai fazer no mês que vem, esse sonho ficará em uma gaveta e, em algum momento, ele será trancado com um cadeado. E, se isso acontecer, quando você perceber, o tempo passou e você não realizou seu sonho, por menor que ele fosse — ensina o velejador.