Dizer que o mundo está há meio século sem Che Guevara não parece a melhor maneira de recordar que há 50 anos morria na Bolívia o guerrilheiro revolucionário argentino, líder da revolução cubana ao lado de Fidel Castro. Amado ou odiado, desde que foi executado em 9 de outubro de 1967 por militares bolivianos que na véspera o capturaram em La Higuera, na região de Vallegrande, o homem deu vida ao grande mito latino-americano.
Tudo o que se refere ao médico revolucionário é superlativo. A fotografia registrada em 1960 pelo cubano Alberto Korda é a mais reproduzida da história, de acordo com o Instituto-Faculdade de Arte de Maryland (EUA). Nem Albert Einstein mostrando a língua ou os Beatles na faixa de pedestres são tão difundidos quanto o rosto sério do comandante, clicado durante homenagem às 136 vítimas da explosão do barco La Coubre, em Havana. A imagem é o símbolo que normalmente acompanha expressões igualmente icônicas atribuídas ao mártir, como Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás, ou Hasta la victoria, siempre!, que prescindem de tradução e revelam como o seu imaginário segue como emblema maior dos ideais da esquerda latina.
Autor de três livros sobre o revolucionário _ o mais recente, As Três Mortes de Che Guevara, será lançado este mês pela L&PM _, o jornalista e escritor Flávio Tavares considera que a memória de Che atravessa gerações por representar o homem que se sacrificou por uma utopia.
— Che não foi ministro de Cuba para subir na vida, para entrar na corrupção. Ele exerceu a atividade política, como são a revolução e o exercício do poder, para transformar uma sociedade decrépita numa sociedade nova. Cuba era totalmente dominada pela máfia norte-americana, era o quintal onde se despeja o lixo. Quando passou a ser satélite da União Soviética, da qual ele era crítico, houve a primeira ruptura com Fidel. Che queria o socialismo que fizesse surgir um homem novo, sem outra visão de mundo que não a da solidariedade. Essa revolução ele morreu sem conseguir alcançar. O jovem que hoje usa uma camiseta pode nem saber quem foi Che, mas sabe que foi alguém que deu a vida sem pedir nada em troca. Seu grande exemplo humano foi oferecer a sua existência, que é o único poder que nós temos — salienta Tavares, que como repórter conviveu com Che por 13 dias no Uruguai, em 1961.
Para o jornalista e professor da PUCRS Juan Domingues, que no livro Che Guevara — Mito, Mídia e Imaginário (EdiPUCRS, 2010) reflete sobre o papel da mídia na construção da mitologia em torno do guerrilheiro, é preciso considerar que Che é um mito, primeiramente, por ter morrido. Nesse sentido, Che e Fidel podem ser comparados a Lennon e McCartney, ou Senna e Pelé.
— Mitos só nascem com a morte brusca, grave, violenta. Se Fidel tivesse morrido na revolução, teria virado um mito. Mas ele foi presidente, sofreu com todo o desgaste político e econômico e morreu velhinho, como todos iremos um dia. O mito se sustenta naquele cara forte, destemido, estrategista. Não sei se as pessoas ainda pregam Che como projeto. Elas sabem que, ao erguer sua bandeira, estão demonstrando uma identificação com um pensamento revolucionário, que é a marca óbvia deste mito, mas não necessariamente queiram fazer uma revolução. O mito sana algumas identificações pontuais. A esquerda se apropria do mito de Che para manter vivo um ideal de revolução e de resistência — analisa.
Tavares compartilha da visão de Domingues e faz um paralelo com a religião:
— Se Che não tivesse sido executado da forma como foi, mas tivesse morrido tomando antibiótico no hospital, ele permaneceria tão presente? Penso que não. A imagem se compara ao próprio cristianismo. Cristo passa a ser uma figura transcendental porque morre na cruz. Sem a pregação, não teria tido a pungência e a profundidade que teve ao longo dos séculos e tem ainda. Com Che ocorre algo semelhante — avalia.
Um rosto para consumo
Combatente do sistema capitalista, é paradoxal o fato de Che postumamente se tornar um produto do próprio sistema que dedicou a vida a tentar destruir. A identificação com o imaginário em torno do revolucionário rende à indústria uma infinidade de produtos, desde chaveiros e camisetas até calcinhas e biquínis com o rosto imortalizado por Alberto Korda (anos mais tarde recriado em monotipia pelo artista plástico irlandês Jim Fitzpatrick). A professora de semiótica da UCS Ivana Almeida da Silva destaca que a fotografia esteve ligada às manifestações de maio de 1968 na França e ao movimento hippie, passando a representar liberdade, anarquia e prazer. Desde então, diversos discursos têm tomado carona no semblante ético e jovem do Che, à época com 31 anos:
_ A imagem é forte, e carrega um discurso implícito que não pode ser negado, por mais que se fale em consumo. O interessante no jogo das imagens é perceber seu uso, por exemplo, na esfera política. Shepard Fairey, artista que em 2008 fez o cartaz da campanha política de Obama, se inspirou declaradamente na fotografia de Korda. Segundo ele, o corte de cabelo e o casaco pareciam rebeldes, e Che tinha um olhar voltado para o futuro. Temos então um mito da esquerda que passa a circular, de certa forma, na direita, a partir da imagem _ destaca Ivana.
Assim como a indústria cultural de tempos em tempos revive Che em filmes e livros, a imprensa com frequência recorre à sua figura. Como a capa do jornal esportivo italiano Gazzetta Dello Sport de 29 de abril do ano passado, que fez uma montagem com o rosto do treinador argentino Diego Simeone e o Che fotografado por Korda, sob o título Comandante Simeone (para retratar um modelo de jogo austero e combativo). É um exemplo que Juan Domingues usa para explicar uma das quatro variáveis que alimentam o mito: o consumo.
_ A primeira é a foto (de Korda), pois há sempre uma imagem que reverbera o mito. Outra é o consumo, pois as pessoas consomem Che. A terceira é a ideologia. O muro de Berlim caiu, o Leste Europeu não existe mais, o socialismo não se consolidou, mas o pensamento ainda está vivo. No DCE, na marcha do MST... são lutas de resistência que se utilizam e se apropriam do mito. E a quarta variável é a mídia, que fala nele o tempo todo. Todas elas se retroalimentam.
Importância e contexto
Cientista político e professor de Relações Internacionais da Unisinos, Bruno Lima Rocha posiciona Che ao lado de heróis libertadores como Bolívar, San Martin e Artigas, sendo o principal representante da utopia da esquerda pós-guerra.
— Guevara trazia consigo elementos fundantes de nossas culturas e países, como o desapego material, a dedicação sobre-humana a uma causa justa, a abnegação do próprio corpo — como pode um gesto físico de um asmático? — e um sistema de crenças inquebrantável. Neste sentido, atingiu uma categoria "ecumênica" para as esquerdas, marxistas ou libertárias. Passado meio século, Che é mais um exemplo de conduta política virtuosa do que acerto estratégico. Estava certo ao se contrapor ao imperialismo e isso também tem validade hoje em dia. O seu martírio na Bolívia faz parte de uma experiência política que transcende o momento e passa uma ideia de eternidade — pontua.
Na mesma medida em que é símbolo perene de ideais libertários, Che Guevara é atacado por setores da direita, que principalmente na internet o retratam como um assassino sanguinário, pelas execuções que ordenou ao fim revolução cubana. Para Flávio Tavares, é preciso considerar o contexto que envolve a luta:
— Che foi integrante de uma revolução. O que houve em Cuba não foi um golpe de Estado. Eles combateram durante dois anos e meio. Depois o Che presidiu um tribunal revolucionário, em que as penas são rápidas. É um tribunal sumário e muito possivelmente houve injustiça. Executaram todos os torturadores, criminosos de guerra, mas foi o final de uma revolução. Era um tribunal em que as pessoas poderiam falar, se defender, e nem todos foram executados. Houve quem pegou prisão, quem foi absolvido. O que é sanguinário e brutal é a guerra em si, não o guerreiro.
Rocha ressalta que a análise da obra do guerrilheiro tanto do ponto de vista político quanto militar oferece razões para críticas. Contudo, do ponto de vista do legado e do exemplo, é indiscutível.
— Críticas descontextualizadas carecem de qualquer importância. Criticar o emprego da força na política sem entender o que é um contexto revolucionário e como se dava a estrutura de informantes e mafiosos em Havana em 1959 é um atestado de ignorância e má fé política, algo totalmente dentro das expectativas de comportamento da direita colonizada.