Sérgio Vaz é militante da palavra, ativista da poesia. Organiza versos que atentam à sociedade reticular contemporânea, feitas de muitas periferias e não mais um só centro. Em 2009, foi escolhido pela revista Época como um dos cem brasileiros mais influentes de daquele ano. Quase uma década antes, formalizara um de seus projetos mais significativos, a Cooperativa Cultural da Periferia. Vive na região metropolitana de São Paulo, mas verseja pelo mundo. E faz de cada récita, de cada rima, de cada sarau que organiza, uma afirmação da potência inclusiva da vida.
Palavra e poesia: potência para mudar uma comunidade?
A gente ficou muito tempo longe da literatura e, quando a gente se apropria, isso vem de uma forma muito forte. Ela vem junto com a ideologia de transformar o bairro, a cidade, talvez, o país em que se vive. A poesia deixou de ser um privilégio. Isso é a força. A poesia deixou de ser o pão do privilégio. A poesia não serve apenas para xavecar, serve também para falar das coisas do país. É preciso se apropriar da literatura também como arma. Ela não é mais aquilo que nos assusta, amedronta ou ilude. Ela serve também para olhar para outras coisas.
Como começou a articular isso?
Quando a gente começou, há 15 anos, não tinha ideia do que estava fazendo. Só queria um espaço para conversar, falar poesia. O cara emprestou o bar numa quarta-feira, pois era um dia que não vinha ninguém. O que aconteceu é que, mesmo que a gente não soubesse, todo mundo tinha algo na gaveta, uma coisa que escreveu. Nós trouxemos de volta essa coisa da oratória, dos griôs. A gente começou a fazer poesia para a comunidade, e a comunidade fez a gentileza de nos falar. Assim como nos anos 1960 tinham os CPCs (Conselhos Populares de Cultura, da UNE), que valorizavam a cultura, os saraus viraram células de cultura em São Paulo e hoje estão espalhados pelo Brasil inteiro.É uma aposta no protagonismo da cidadania?Literatura grega é feita pelos gregos, literatura negra, pelos negros. A literatura periférica é feita por gente da periferia. Essa literatura tem a ver com a nossa vida. Agora quem conta a história é a caça, não é mais o caçador. Estamos assumindo o protagonismo da nossa vida. A gente não quer que digam qual é a nossa cidadania, a gente quer descobri-la. E descobrindo isso, a gente se descobre. Conseguimos aí o artista cidadão. Não é arte pela arte, pois ainda enfrentamos racismo, violência, falta de educação, saúde precária. Nós temos que falar disso.
Esse movimento está mudando os ambientes culturais das periferias?
Milton Santos falava que a revolução virá da periferia. Tem essa coisa da internet, que juntou todo mundo, pela globalização. E isso vem também a reboque do hip hop, que foi o primeiro grito de independência, afirmando ser da periferia. Nossa autoestima não depende mais de ninguém. Antigamente se queira mudar do lugar onde morasse, hoje se quer mudar o lugar onde se mora. Temos sarau, cinema na laje, encontros e debates. Essa autoestima nos apoderou. A gente formou público. A gente não está só escrevendo, está se preocupando com quem vai ler. Eu sou visto nas ruas, sou o poeta que foi na escola. É isso, ser reconhecido, não ser famoso. Essa autoestima nos diz que a gente não precisa ser referenciado pelo centro para se sentir bem. Somos nós que temos que fazer a mudança. Durante muito tempo ninguém chamou a gente para discutir. Agora a periferia do Brasil inteiro quer discutir. E isso também está acontecendo pela literatura. Que sorte.Isso está acontecendo em todo o Brasil mesmo?Sim, e é um processo irreversível, está acontecendo. E não foi o governo ou academia que falou: vocês vão ter que ler. Foi um processo de sedução. A poesia chegou de forma sedutora. As pessoas não querem só dançar, rebolar, querem ter conhecimento também. E teve uma série de ações do governo que levou as pessoas à faculdade. E o mais bacana da faculdade é a convivência acadêmica. O diploma é só o final da jornada. Descobriu-se que não só o boy pode estudar. A molecada não quer mais ser só operário, que é uma coisa digna claro. Querem também pensar.
Qual a força da cultura hip hop nesse contexto?
É total. Esse movimento literário vem a reboque da cultura hip hop. Esse foi o primeiro grito de independência, que afirma “sou negro, sou da favela”. Só que eles não quiseram fazer esta música para os outros, fizeram para a sua comunidade. Essa é a diferença. Quando ela chegou na comunidade, chega através da dança, da letra, do MC, da festa. E esse contexto, subliminarmente, traz informação. Tem jovem que ouviu falar pela primeira vez de Martin Luther King numa música do Racionais MCs, do Malcon X numa música do GOG. As pessoas foram descobrir Zumbi dos Palmares, Muniz Sodré, Milton Santos, Luiz Gama, nas músicas. Essa é a força. E tinha as rádios comunitárias e tal. Quando o mainstream viu, era tarde. Já tinha acontecido a coisa toda. O Racionais vendeu 700 mil discos numa época em que Sandy e Junior estavam na tevê e tudo e venderam 350 mil.
O que precisa mudar no país?
A educação. Não vejo mais nada além disso. Educação aliada à cultura, ao lazer, ao conhecimento, um professor bem pago, uma escola bem protegida, alunos tendo aulas de dança, teatro, cinema, matemática. A gente tem que se preocupar com a educação desde o começo. Não dá para imaginar que o governo dê R$ 10 milhões para alguém fazer uma peça que o povo não vai ver. E não é pela questão do dinheiro, é pelo hábito de ir ao teatro. Tem muito filme e pouca sala de cinema. Algo está errado. Sou a favor de uma educação pública de qualidade.
Como vê a chegada de novos migrantes em várias cidades do Brasil, inclusive Caxias do Sul?
O que está acontecendo é até bom, pois a gente falou o tempo todo que no Brasil não tinha racismo, mas descobre que tem. Tinha o papo do país miscigenado, onde todo mundo se gosta. A gente está vendo que não é assim, as pessoas que poderiam ser generosas e não são. Mandamos um monte de gente para o mundo inteiro, hoje não recebemos bem os negros. Tem gente jogando pedra em outro ser humano. E o que teve e tem tudo, que poderia ser generoso, não é. O racismo está entravado na nossa vida. Esse país só se fez, só é assim por causa da escravidão. E mesmo assim eles não agradecem aos negros por isso. Eles são chicoteados, apedrejados. O racismo é a parte mais horrível do país, a parte mais horrenda do ser humano. Engraçado que as pessoas não se tocam de quanto é horrível atirar pedra no ser humano pela cor da pela e no domingo ir ao cinema agradecer a vida maravilhosa que tem. Eu acho que o país é ateu, pois se alguém acreditasse em Deus, não faria isso. Os haitianos, senegaleses, estão sofrendo o que nós brasileiros sofremos lá fora. O racismo é abominável. O rico, a elite, sei lá, não entende o outro. É aquele “eu tenho, você não tem”. Isso é perverso. Muitos anos se falou que esse país tem que melhorar e tal, aí o cara entra para a faculdade pelo Prouni e não pode, pelas cotas, não pode, Bolsa Família não pode. Como quer que esse cara melhore? Parece, então, que estavam mentindo pra gente. A literatura não aceita mais essa mentira, a periferia não aceita mais esse continho da carochinha, esse papo de somos todos iguais. Queremos esta igualdade na lei.
Teme pelo crescimento da direita, da intolerância, da xenofobia no Brasil?
Isso é assustador. Pessoas sendo espancadas nas ruas por causa de religião, traficante evangélico que expulsa mulher de terreiro de umbanda! Deus se associou a esse traficante? Será que abençoa e dá o poder do fuzil a esse cara para ele intervir na vida da pessoa por causa de religião? Essa bancada religiosa, o crescimento da homofobia. Eles não entendem o avanço do povo, a essa igualdade de direitos. Isso assustou todo mundo. Eles queriam continuar mandando dinheiro para a ONG para a ONG ajudar a gente. Não queriam que isso acontecesse de forma direta. Hoje o cara tem um cartão, ele recebe, não tem alguém que entrega as coisas para ele.
Como você se define?
Sou um amante da literatura. Tudo o que eu faço é por causa dela. A literatura salvou a minha vida diversas vezes. Quando eu era pequeno, meus pais se separaram, eu não achava graça em viver. Até ler o primeiro livro. Quando me achava estranho, li Don Quixote pela primeira vez. Daí achei que não tinha nada de estranho comigo, tinha era com eles. Tenho sede de conhecimento. Sou um pêndulo, tenho muitos heróis, de Cervantes, Neruda e Luiz Gama a Racionais MCs e Versão Popular.
Entrevista
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