O bauru ao prato evidencia-se como uma das iguarias na gastronomia de Caxias do Sul. A refeição, que utiliza a nobreza do filé mignon, recebeu toques originais na cozinha caxiense, sendo preparada aqui como não se encontra em outro lugar. Saboreá-la é também interagir com uma história de 60 anos. Embora não haja registros exatos e muitas versões se confundam, a divagação é curiosa, remetendo aos primórdios de Guido Breda, conhecido como Bossa, e do confeiteiro Lulu Kerber, o Mestre Lula, que se dedicaram ao preparo de inigualáveis baurus.
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Breda (Bossa) marcou época na década de 1960, ao trabalhar nas bombonières A Cigana e Paris. Contemporâneos dele recordam que o cozinheiro chegava a preparar 14 baurus ao mesmo tempo. No balcão, fazia malabarismo com os pratos e era um artista cheio de estilo, sempre atencioso com os clientes. Armando Três, 75 anos, conheceu Bossa colhendo uvas no interior de Farroupilha. Coincidentemente, trabalhou com o amigo na Bombonière Paris, estabelecimento de propriedade do irmão Otacílio Três. Armando recorda que no início de 1960, o restaurante viveu o auge do movimento. O público do Cinema Real assegurava senhas antecipadas para garantir baurus após sessão.
O Bossa dava conta do recado e possuía reconhecimento de pessoas que vinham até de município vizinhos para provar a receita.Depois de trabalhar na Bomboniere A Cigana e Paris, Bossa decidiu investir no próprio estabelecimento. Em sociedade com Walter Mari, inaugurou a Lancheria Bossa, na Avenida Júlio de Castilhos, numa área nobre do bairro São Pelegrino, em setembro de 1970. A morte surpreendente de Bossa, aos 32 anos, no entanto, revelou um outro talento na perpetuação e preparo do bauru: o confeiteiro Lulu Kerber, reconhecido como Mestre Lula, sucedeu Bossa com desenvoltura, cujo complemento do molho verde registrou a pitada de um tempero característico na culinária caxiense. Vilma Sirtoli Mari, mulher de Walter, recorda que se Mestre Lula não tivesse surgido após a morte de Bossa, a perspectiva era de fechar o estabelecimento.
A partir daí, Mestre Lula conquistou espaço com paixão e dedicação. Em dezembro de 1971, Clóvis Pinheiro, que dirigia o programa Primeiro Degrau, na TV Caxias, convidou o cozinheiro para demonstrar o preparo do bauru. Na imagem feita no estúdio, percebe-se o apresentador Charles Flores e Walter Mari acompanhado o passo a passo.Mestre Lula teve uma atuação além da Lancheria Bossa. Por volta de 1975, abriu um restaurante no prédio do aeroporto. Trabalhou no restaurante Avenida e no emblemático Danúbio.
Hoje, o saudosismo de muitos clientes de Mestre Lula reconhecem com afeição o profissionalismo e a figura humana dele. O representante comercial Luis Fernando Nicoletti, 63, que viajou por todos os municípios do Estado e fornecia o presunto cozido para o restaurante Bossa, em meados de 1980, afirma que não existiu bauru melhor que o elaborado por Lula. O jornalista Luiz Carlos de Lucena, então diretor da TV Caxias, em 1970, apreciador dos suculentos baurus, enfatiza que Lula soube substituir Bossa com maestria. Frequentador assíduo do Danúbio, Lucena testemunhou o trabalho dos dois cozinheiros e se tornou fã deste tipo de refeição. O bancário João Sirtoli, 66, que prestigiou a abertura da Lancheria Bossa e também frequentava o restaurante Bauru, no bairro de Lourdes, lembra eloquentes elogios ao Mestre Lula. Na 4ª Légua, Lula preparava baurus no salão paroquial, cujo lucro auxiliava a comunidade, demonstrando espírito fraterno.
Soli Lemos, 51, trabalhou no Bossa entre 1986 a 1992, época em que a casa era administrada pela família Stragliotto. Soli recorda que, após o expediente, chapeiros, cozinheiros e garçons de restaurantes vizinhos no bairro São Pelegrino se reuniam para jantar juntos – e o comedido Mestre Lula fazia parte. Alguns ingressavam madrugada adentro jogando cartas, onde destacava-se a presença do escultor Bruno Segalla.
– Nós éramos como uma família – recorda Soli.
Dentro deste contexto, embora o bauru possa ser encontrado em diversos estabelecimentos, percebe-se que poucas pessoas dominaram a arte de prepará-los com requinte. Além disso, há grandes diferenças no padrão de molhos, sabores e na espessura do bife.
Segredos muito bem guardados
Nilço Antonio Silva, 48, é um sucessor direto do Mestre Lula. O proprietário do restaurante Le Grand conheceu Lula na Lancheria Bossa ainda na adolescência, em 1981, quando era atendente no local. A amizade profissional permitiu adquirir os segredos de preparar os molhos, bem como abrir o filé mignon, tornando-os bifes com corte primoroso e espessura suculenta. Mestre Lula, além de manter intacta as boas receitas e trazer novos conceitos à gastronomia local, influenciou uma geração de garçons e auxiliares de cozinhas.
Os ensinamentos deram a Silva a oportunidade de trabalhar no Danúbio entre 1992 a 2014.Há dois anos, aproveitou a maturidade profissional para inaugurar o próprio restaurante. Ele é o único discípulo direto de Lula a utilizar o molho verde, um complemento do bauru de tomate, cujo segredo reúne cerca de 15 ervas. No Le Grand, é o próprio Nilço que faz o corte dos filés, que à primeira vista parece ser fácil, mas exige toques sutis. Na maioria dos restaurantes brasileiros, os pratos de filé mignon utilizam a peça cortada em medalhões. O bauru caxiense caracteriza-se pela carne fatiada e aberta, conservando espessura graúda, o que a deixa suculenta. Já o molho verde é somente saboreado em Caxias do Sul. Esta é uma peculiaridade que instiga paladares na cidade. Nilço é reservado em não revelar os segredos deste tempero – o bauru caxiense tem seus mitos.
Outro entusiasta da gastronomia que se orgulha de ter aprendido os misteriosos detalhes do Mestre Lula é Remi Erlo, 58. A amizade entre os dois fortaleceu-se na comunidade da 4ª Légua. No salão paroquial, Lula colaborava com sua experiência no preparo de baurus em festa de cunho social. Remi recebeu o convite para saborear pizzas e filés em Caxias, onde se tornou um apreciador habitual de final de semana e também decidiu abrir seu restaurante. Para orientar a organização dos pratos, recebeu auxílio de Lula, com quem aprendeu a fazer o corte sanfona no filé mignon, procedimento que valoriza e preserva a suculência da carne. Remi também é um dos agraciados que anotou em uma caderneta os tipos de ervas e a maneira de preparar o molho verde.
Administrando um restaurante no bairro São Pelegrino, esporadicamente agrega o bauru no cardápio.
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Lula e o envolvimento na comunidade
Erilda Soletti, 73 anos, casou-se com Lulu Kerber (07/03/1934-08/06/2002) em janeiro de 1979. Conforme Wilma Sirtoli Mary, 72 anos, foi a mãe, Emilia Soletti, quem aproximou o casal para namoro. O próprio Lula, exímio confeiteiro, fez o bolo da festa. O casal teve a filha Paula, hoje com 33 anos.
E foi numa região rural da 4ª Légua que o gastrônomo encontrou sossego e recobrar energias para enfrentar as exigências diária de um restaurante. Erilda lembra que Lula tinha um envolvimento comunitário agradável e participativo, sempre disposto em auxiliar nas festas da paróquia. Num rústico forno de barro (ao lado), cozinhava seus pães coloniais e auxiliava na lida colonial.
Lula também recebeu ofertas para trabalhar fora de Caxias do Sul. Entre as oportunidades, destaca-se convite para cozinhar na residência da presidência da República, na década de 1970.