A trama do longa gaúcho Nós duas descendo a escada lembra muito a de um dos filmes mais marcantes desta década – o francês Azul é a cor mais quente (2013). Mas a história da paixão entre a jovem e inexperiente Adri (Miriã Possani) e a segura e determinada Mona (Carina Dias) tem brilho próprio. Nós duas... é o segundo longa-metragem do cineasta Fabiano de Souza, que estreara em 2010 com A última estrada da praia, depois de dirigir ótimos curtas como Um estrangeiro em Porto Alegre (1999) e especialmente Cinco naipes (2004).
Pode ser visto a partir desta quinta-feira no Espaço Itaú e no Guion Center.
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Os cabelos loiros de Mona são como os azuis de Emma, a personagem de Léa Seydoux no filme de Abdellatif Kechiche: a metáfora de um novo mundo que se descortina para Adri, espécie de Adèle a flanar hesitante pelas ruas da Capital. Fabiano de Souza as filmou durante nove meses, e apresenta o arco da relação, estabelecido nesse período, em capítulos correspondentes a cada mês do relacionamento. Esses entrechos não são fechados em si, mas funcionam isoladamente, em parte por conta da elaboração do roteiro em meio às filmagens – os intervalos funcionam como grandes elipses narrativas, e cada um dos nove mergulhos na intimidade das duas têm suas próprias revelações, geralmente sobre temas usuais das relações (ciúme, possessão, renúncia a projetos pessoais em nome da parceria).
Trata-se de uma maneira inventiva de apresentar os clichês dos romances – o que já vinha prenunciado pela própria escolha de duas personagens do mesmo sexo. Mas a maior força de Nós duas descendo a escada está na maneira de abordar o tempo nesse contexto. A organicidade do roteiro, assinado pelo próprio diretor, é semelhante à de Boyhood (2014), ainda que o período destacado pelo longa gaúcho seja bem menor, na comparação com o monumental ensaio sobre o amadurecimento de Richard Linklater. Nós duas... é, também, um filme sobre o crescimento – mais de Adri do que de Mona, mas fundamentalmente do que Adri vivenciou desde que conheceu Mona.
Miriã Possani dá conta do desafio. Adri tem seu olhar doce e inseguro e,
ao mesmo tempo, movimentos de quem domina plenamente o espaço cênico (vale conferir seu trabalho corporal no curta Escotofobia, ou ainda em
Nua por dentro do couro e na série Notas de amor, disponível na Netflix).
Há muito sexo em Nós duas... – e classificação etária 16 anos, o que é
adequado, embora surpreendente, dada a polêmica da insana censura
imposta (e depois revogada) a Aquarius.
O que prejudica um tantinho a fruição é a literariedade de certos diálogos, que vai de encontro ao naturalismo que marca todo o projeto. Quanto às escadarias que aparecem constantemente, em geral como cenário dos passeios das duas personagens, pode-se dizer que fazem parte de uma visão singular de Porto Alegre, que só o observador mais perspicaz é capaz de ter. Ponto para o diretor
e seu fotógrafo, Bruno Polidoro.
O fato de o título mencionar que o casal está "descendo" não significa necessariamente pessimismo. Nós duas... mostra os altos e baixos do namoro
– e não apenas uma coisa ou outra. É no primeiro ato que Adri usa um
vestido vermelho marcante. Mas é esta a cor do relacionamento entre ela
e Mona, da primeira à última sequência.
NÓS DUAS DESCENDO A ESCADA
De Fabiano de Souza.
Drama/comédia romântica, Brasil, 2014, 98min.
Em cartaz, em Porto Alegre, no Espaço Itaú e no Guion Center.
Cotação: 3 estrelas (de 5).
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