O contraste é emblemático: o mesmo prédio que guarda centenas de objetos de imigrantes italianos, de diferentes períodos do desenvolvimento da cidade, abriga também uma exposição sobre a religiosidade dos senegaleses que aqui se instalaram. A Fé que Conduz: do Senegal a Caxias do Sul pode ser visitada até 7 de maio, no Museu Municipal.
São 34 imagens, de autoria da médica Marcia Marchetto, selecionadas num universo de mais de mil fotografias, produzidas desde agosto do ano passado durante celebrações religiosas. A intenção dela - integrante do Clube do Fotógrafo -, foi diminuir a distância entre caxienses e senegaleses. Para isso, usou a fé, um sentimento praticamente universal, como elemento de aproximação, apesar de credos diferentes. Optou por retratá-los, essencialmente, em preto e branco.
- A religião é a base cultural deles, há um código moral. E, normalmente, eles são tão coloridos... Isso é para dar a ideia da introspecção, eles são concentrados quando rezam - explica ela, que precisou de autorização do Instituto Nouroud Darayni Caxias do Sul.
A intenção dela é estimular o respeito à alteridade. Da mesma forma que senegaleses despertam interesse artístico dos outros por serem diferentes, são, também, produtores de arte. Alguns trouxeram habilidades na bagagem, outros ressignificaram vivências para se sentir mais próximos de casa.
África incorporada
A África de muitos países é, também, de muitas danças. Em falas entrecortadas por memórias corporais, os bailarinos Sali Mata Seck, 27 anos, e Ansoumana Eissé, 28, citam muitos nomes e os instrumentos ligados a cada uma delas. O percussivo djembê embala os passos do dundunda, uma das variações de dança do Senegal mais conhecidas no mundo, segundo Eissé.
Ele está em Caxias há um ano e meio. Sali chegou há dois. Antes, eles circularam pelo Brasil com o grupo Kairaba. Dançaram no Rio, São Paulo, Goiânia. A formação acabou e, como na diáspora africana, cada bailarino foi para um lado. Em Caxias, eles têm outras ocupações. Mas, claro, gostariam de dançar profissionalmente.
- A dança africana é bonita e o brasileiro gosta muito da nossa cultura - diz Eissé, que vem de uma família de músicos e dança há 15 anos.
Desde 2000, Sali estudou na Guiné Bissau com o mestre Jo Bousaji, que morreu em dezembro, e, no Senegal, frequentou a conceituada École des Sables, tendo aulas com a não menos respeitada coreógrafa Germaine Acognay. Fala da Dulumba, da Lamba, das misturas do clássico é do étnico, que chega ao contemporâneo. Mas é quando dança que sua fala corporal é mais virtuosa, carregada de nuances e vetores, expansões e tensões. Tudo feito com sorriso no rosto.
- São muitas danças, todas muito fortes. Africanos dançam muito - diz, lamentando o pouco conhecimento dessa riqueza coreográfica de seu continente no Brasil: - Por aqui, nossa dança está morta. Não conhecem, não temos público.
Enquanto ainda se adaptam ao cotidiano de sobrevivência dos migrantes recém-chegados no Brasil, Eisse e Sali, parceiros de palcos e amigos unidos pela dança, descrevem que, de alguma forma, a dança afro aproxima contextos e, sobretudo, tem a uma dimensão além da beleza que lhe é própria.
- Dançamos pela terra - diz ele.
Silenciosa em palavras, mas pra lá de verborrágica com seu corpo em movimento, Sali aponta ao alto e ao chão para explicar o sentido da dança africana: deuses e homens dançam juntos. (Carlinhos Santos)
Raízes musicadas
Virou clichê falar das imagens sacras e da religiosidade que os italianos trouxeram na bagagem ao aportar no Rio Grande do Sul há 140 anos. Seria clichê também falar dos tambores que acompanham os novos imigrantes na contemporânea jornada África-Caxias? Talvez sim, mas é interessante traçar paralelos entre as valiosas contribuições culturais que constroem a cidade e pensar sobre os horizontes que se abrem a cada nova identidade que se acomoda por aqui.
De todas as manifestações artísticas que os senegaleses têm mostrado, aos poucos, aos novos conterrâneos, a música sempre foi a mais evidente.
- Aqui tem africano, tem cultura africana. E as pessoas querem saber - diz o músico Dame Ndiaye, sobre o interesse dos caxienses sempre que um tambor começa a soar pelas mãos de um senegalês como ele.
Ndiaye integra o grupo Sabar Africa, formado em Caxias em 2015. Em 2014, a cidade já tinha servido de berço para outro grupo do mesmo estilo, o Tam-Tam Africa. Assim como os filhos dos senegaleses, que já começam a nascer por aqui, Sabar e Tam-Tam também têm Caxias do Sul como cidade natal, apesar de levarem a África no nome.
- Temos que ter mais grupos, aqui a gente veio imigrar, mas cada um que sabe fazer algo tem que mostrar nossa cultura - revela Abdoulat Ndiaye, o Billy, presidente da Associação dos Senegaleses e incentivador dos artistas de seu país.
Billy participou das apresentações que o Sabar Africa fez durante os três dias de Mississippi Delta Blues Festival (foto), no ano passado. Essa integração - um dos objetivos de todos os músicos senegaleses que vivem em Caxias - já foi experimentada de várias formas. Além da participação do Sabar Africa no festival de blues, o Tam-Tam Africa já esteve no Festival Brasileiro de Música de Rua, no Aldeia Sesc e no festival El Mapa de Todos (ao lado dos caxienses do Projeto CCOMA).
Para Sohkna, cada ensaio ou apresentação é também uma forma de celebrar as origens.
- A África tem uma marca muito forte na música, usamos como uma forma de nos libertar, de se comunicar, até de chorar. Tocando relembramos de momentos bons no Senegal, das nossas raízes. Muitos dos músicos que estão aqui ainda não sabem falar o português, mas na música todo mundo se entende - diz. (Siliane Vieira)
As cores africanas
Radicado há dois anos e meio em Caxias do Sul, o senegalês Ousmane Mathurin Ndiaye, 38 anos, tem dupla jornada: como metalúrgico e como artista. Integrante do coletivo Math-Art, ele produz arte em vidro, criando quadros e outras peças de colorido vibrante e temática africana.
Em fevereiro, Ousmane realizou sua primeira exposição, e em breve engata a segunda. Intitulada Cultura Africana da Diáspora, a mostra ocorre de 9 a 16 de abril, no Martcenter. A receptividade, garante o artista, tem sido boa:
- Os brasileiros são adoráveis e gostam muito da cultura senegalesa _ diz, acrescentando que já foi convidado para "fazer a decoração" de várias residências em Caxias.
O fato de ainda falar pouco português (comunica-se principalmente em wolof e francês) não impediu que, no último dia 7, o artista senegalês aproveitasse a vinda da presidente Dilma Rousseff à cidade para presenteá-la com duas obras suas. Orgulhoso do feito, postou no Facebook as fotos da mandatária sorrindo ao receber os quadros, com a legenda "Reçu par Dilma que du bonheur" ("recebido por Dilma, que felicidade").
No Math-Art, Ousmane é o responsável pela parte artística - os outros quatro integrantes, três senegaleses e uma brasileira, cuidam de outras tarefas, como a divulgação. O artista vive em Caxias com a mulher, Bentu, e tem quatro filhos que ficaram no Senegal. (Maristela Deves)
Cultura
Caxias abraça manifestações culturais senegalesas
E, ao mesmo tempo, produz arte inspirada no Senegal
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