O outono chegou e ninguém viu, porque não existe nada mais urgente, importante e necessário do que se prevenir de uma doença nova e avassaladora. Não existe outro assunto, outra preocupação. A semana serviu para readaptar rotinas, rever prioridades, redistribuir tarefas, refutar superficialidades. As folhas mal começaram a cair, mas talvez só possam ser contempladas das janelas (para quem tem janelas acessíveis às ruas). Aliás, eis outra novidade: podemos olhar através das vidraças, com tempo para a admiração. O espaço doméstico ganhou nova dimensão em tempos de isolamento forçado.
Vivemos numa era de efervescência dos clichês: todos acham um absurdo os carrinhos cheios de papel higiênico no mercado – se alguém souber o porquê, por favor, me conta – e evocam a empatia, mas até pouco tempo atrás não davam passagem uns aos outros no trânsito e passavam na frente em filas. Poucos conseguem entender que as privações momentâneas precisam ser feitas por causa dos outros.
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Estamos num momento em que a vida tornou-se repleta de contatos e interações basicamente virtuais e, agora, na impossibilidade real de se aproximar de alguém, notamos como pode ser ruim viver distante fisicamente de quem gostamos. E como é difícil experimentar solidões a dois, a três, em família. Dividir um mesmo espaço compulsoriamente, às vezes sem entender direito o que se está fazendo ali, naquela situação. Sentindo um quê de melancolia e, com sorte, de solitude.
E as fake news apocalípticas? São um sinal de que tem gente que se presta a disseminar o mal em meio a um mal pior. E as tais mensagens com “cartas do coronavírus para a humanidade”, viram? As autorreflexões sobre as lições esquecidas e que estão sendo trazidas à tona: o trabalho não nos completa, a vida pode ser simples e em família, precisamos de bem pouco para sermos felizes, devemos perder a arrogância e nos importar com os outros. Não adianta termos tudo se não tivermos saúde. O óbvio precisa ser dito, sempre.
Acho triste imaginar que a gente precise passar por isso para entender que tudo o que precisamos de verdade está dentro de nós, que temos um potencial maravilhoso de mobilização e mudança e que um abraço pode ser um bálsamo em dias ruins – ou uma fonte de energia ressignificada em dias ótimos. Não lido bem com a ideia de privação para valorizar a abundância, prefiro exercitar a profusão no dia a dia e estou com uma dificuldade absurda de não abraçar e tocar e beijar as pessoas e evitar contatos e encher as mãos de álcool gel. Mas eu sei que não é por mim e que é temporário, mesmo sem ter a noção de quanto tempo estejamos falando.
Somos o coletivo – e não há estereótipo aqui. Forçadamente, estamos rearranjando o devir, num momento bastante hegeliano de conceber que a razão humana acompanha o desenvolvimento da humanidade. Já não importa se eu gosto de flores e estamos no outono. Mesmo que eu não queira folhas caídas, galhos aparentes, é tudo o que eu tenho agora, que todos nós temos. Só depois de dias cinzas e árvores secas, voltaremos a vibrar e nos encantar com a promessa do florescer. Não é sempre assim?