Os três quadradinhos em branco apareceram na horizontal, no meio das palavras cruzadas. Faziam referência ao primeiro nome do escritor moçambicano cujo sobrenome é Couto. Mia Couto, um dos meus favoritos, que imprime poesia até para expressar as mazelas de uma guerra civil. Ele achou muito curioso, porque recém tinha me ouvido falar sobre o autor.
– Googleei e apareceu do lado de João Cabral de Melo Neto, muito bem acompanhado – sentenciou, assim, como se eu precisasse de confirmação de que estava falando sobre alguém que valesse a pena.
Achei graça. Como alguém que acredita em tão pouco iria se deixar impressionar por meia dúzia de frases? Como falaria sobre onomástica sem essa interação? Como lembraria desse fragmento de letras daqui a alguns anos? Aliás, as perguntas nem existiriam dias atrás. Mas não é justamente a simplicidade compartilhada que dá sentido às memórias? Triste seria não pudéssemos lembrar daquilo que nos fez sorrir tão espontaneamente, né?
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Numa das noites dessa semana, assisti ao lindinho espanhol Viver Duas Vezes. A história abre com uma versão linda de Perfidia, cantada por Maria Rodés, e um casal com cabelos esvoaçantes sentado em um deck na beira da água. O jovem preenche quadradinhos em branco com números – sudoku. Mais tarde, descobre-se que ele prefere chamá-los de quadrados mágicos. Desta vez, fui eu quem lembrou da cena das palavras cruzadas, talvez como metáfora.
O senhor do filme, Emilio, ao contrário de mim, que sou de humanas (risos), tem exímia habilidade para lidar com Lógica – aqui vai um pequeno spoiler. Graças ao Alzheimer, ele começou a se esquecer daquilo que é urgente e ficou com medo de esquecer o que é importante. No caso, as referências que guardou com carinho, como um amor juvenil e arrebatador. Poderia reencontrar a amada antes de esquecê-la de vez?
Nesta busca (interna e literal), protagonizou uma das cenas mais poéticas que vi nos últimos tempos. Ao se referir a ela, Emilio faz uma relação impensada, como só os apaixonados ousam: uniu matemática e amor: “Os números são previsíveis, mas em meio a tanta harmonia, surge o número pi, misterioso, infinito, que não segue padrões pré-estabelecidos”. A “moça” era o número pi dele, mágico. Eu, que acredito em finais felizes, fiquei com olhos cheios de lágrimas e esperança.
Não é justamente a intensidade das interações e a forma como nos sentimos na presença de alguém que a faz permanecer? Não é esse arrebatamento que muda a vida de perspectiva?
Sempre invejo as musas de autores e compositores, por inspirarem não só quem as versa, mas também as memórias alheias. Melhor do que isso, só a oportunidade de decidir viver para acreditar numa aura de magia infinda.
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